Os autores discutem como a psicologia pode ser descolonizada usando uma abordagem dialética e a Psicanálise Cultural Crítica
Traduzido por Tiago Pires Marques de Mad in South Asia (texto original)
Um artigo recente publicado na revista Psychology and Developing Societies mostra como a descolonização da psicologia é entendida (ou mal-entendida) e o impacto que tem em tornar a psicologia um projeto libertador. O artigo foi escrito por Umesh Bharte, da Universidade de Mumbai, e Arvind Mishra, da Universidade Jawahar Lal Nehru.
A descolonização significa simplesmente o processo de conquistar a independência do domínio económico, político e cultural das potências coloniais. Mas isto não é tão simples como parece. Todos estes fatores estão também relacionados com a psique social da sociedade colonizada, ou seja, a forma como as pessoas pensam, sentem, se comportam, etc.
Os autores apresentam o seu argumento recorrendo a três pontos centrais. Primeiro, o colonialismo não foi tão simples como a imposição de pontos de vista por parte dos colonizadores, mas sim um projeto conjunto entre colonizadores e colonizados. Segundo, mesmo depois de se terem libertado do domínio colonial, estas sociedades continuam a agarrar-se aos valores que tornaram o colonialismo possível. Terceiro, a abordagem binária adotada pela Psicologia Indígena, como Local vs. Global, Indígena vs. Ocidental, é suscetível de falhar no cumprimento do objetivo da descolonização. Os autores sugerem, então, duas soluções plausíveis para estas questões. Primeiro, a adoção de uma abordagem dialéctica e, segundo, o envolvimento de uma Psicanálise Cultural Crítica. Estas soluções são explicadas de seguida.
O colonialismo tem sido amplamente estudado pela sua influência contínua nos aspetos económicos, culturais e políticos, mas relativamente menos pelo seu impacto psicológico. A estrutura de uma sociedade desempenha um papel importante na formação do Eu dessas pessoas e das gerações que se seguem. Assim, o colonialismo desempenha um papel importante na formação da psique dos indianos, na época colonial e na atualidade.
Durante muito tempo, o colonialismo foi estudado em binários entre o Oriente e o Ocidente, o Eu e o Outro, o que negligencia o seu impacto na cultura e na psique das pessoas. Os autores escrevem:
“O verdadeiro antónimo do passado não é o presente, mas é a noção de intemporalidade que se torna o verdadeiro antónimo do passado e do presente juntos. Estendendo esta linha de argumentação ao contexto do colonialismo, pode propor-se que as categorias em sistemas binários como “o colonizador – o colonizado” e “o nativo – o estrangeiro” não são verdadeiros opostos nem mutuamente exclusivos”.
Quando estudamos o colonialismo de forma binária, vemo-lo como um fluxo unidirecional de valores, em vez do projeto conjunto que realmente foi. Os colonizadores não eliminaram as colónias da sua cultura, mas misturaram alguns valores já presentes com as suas intervenções. Porém, os valores indígenas ou originais que não eram do agrado dos colonizadores foram empurrados para as margens, assim como as pessoas que os transportavam. Este facto teve consequências culturais e psicológicas e alterou os significados de identidade.
Os fatores políticos e económicos favoreceram os que detinham o poder e os que o elogiavam. Este facto aumentou o fosso na sociedade indiana. Por exemplo, os valores e a língua inglesa ficaram tão profundamente enraizados na mente dos ricos da sociedade que ainda são apoiados por muitos indianos, mesmo após setenta e seis anos de independência. Esta relação complexa envolve ambas as partes, colonizadores e colonizados, e vai muito para além dos binários Indígena vs. Ocidental e Eu vs. Outros.
Pensar em binários tornou-se uma prática regular para dar sentido às complexas realidades do meio ambiente. Os autores escrevem:
“Pensar em termos de binários tornou-se um estilo cognitivo comum que as pessoas modernas utilizam diariamente. Através do pensamento dicotómico, tentamos organizar ou estruturar as realidades complexas que nos rodeiam. Tendemos a simplificar e a tentar dar sentido a um mundo complicado”.
Este estilo binário faz com que as pessoas se sintam confiantes e seguras, mas à custa de ignorar a zona cinzenta entre duas polaridades. Isto tem impacto no estudo da descolonização da psicologia. A descolonização, quando entendida com recurso a binários, prende-nos às raízes coloniais em vez de nos libertar delas.
O Dr. Sunil Bhatia, numa entrevista ao Mad in America, afirmou: “Quando penso em descolonizar a psicologia, penso em fazer perguntas sobre quem está a contar a história da psicologia, quem tem o poder de construir e disseminar o conhecimento sobre a psicologia, que vozes estão a ser incluídas nessa história?”
Uma forma de entender este problema é o estado das Psicologias Indígenas. A Psicologia Indígena é um ramo da Psicologia que tem como objetivo desenvolver uma compreensão de como os indivíduos de culturas específicas pensam, sentem e se comportam. Tem o potencial de se libertar da influência colonial e de ajudar a desenvolver uma compreensão culturalmente sensível e globalmente relevante do comportamento humano. Os autores escrevem:
“Como forma de descolonização, a própria promessa das psicologias autóctones nos países do Terceiro Mundo em geral, e na Índia em particular, era sobretudo desenvolver uma perspetiva psicológica culturalmente sensível e socialmente reativa. Além disso, esperava-se compreender os fenómenos psicológicos no seu contexto ecológico, histórico, filosófico, religioso, político e cultural. No entanto, com poucas exceções, o movimento da psicologia indígena parece remeter demasiado facilmente para o binário Ocidente-Oriente”.
Infelizmente, o que está a acontecer na Psicologia é que a transferência de conhecimento está a fluir num sentido único do Ocidente para o Oriente. O comportamento humano é amplamente estudado através da lente ocidental, que depois parece ser de natureza universal. Enquanto continuarmos a tratar o Ocidente como o padrão de produção de conhecimento, os binários e o colonialismo não acabarão. Para ter sucesso, as Psicologias Indígenas precisam de encontrar uma solução equilibrada que acomode ambas as extremidades do espetro binário. Os investigadores (Gergen, Danziger, Bhatia) alertaram-nos repetidamente para os danos da adoção desta abordagem binária. Este pensamento binário demasiado simplificado pode conduzir à colonização, em que se podem adotar valores, crenças e identidade influenciados pelas forças coloniais.
Soluções possíveis:
Os autores escrevem que as soluções potenciais para esta crise envolvem a utilização de uma abordagem dialética na criação de conhecimento e a utilização da psicanálise Cultural Crítica. Escrevem:
“A dialética, como método de diálogo ou debate, tem sido central na filosofia oriental e ocidental desde a antiguidade… o objetivo principal do método dialético é resolver o desacordo através da discussão racional”.
Uma abordagem dialética ajudará a chegar a uma solução de colaboração através da apreciação de ideias contraditórias, o que é crucial no caso do colonizador e do colonizado.
A abordagem dialética será especialmente útil para lidar com a crise atual do individualismo, do positivismo e das reivindicações universalistas do comportamento humano, em Psicologia. Uma abordagem dialética ajudará a tornar as amostras na investigação mais diversificadas, a estudar questões sociais como a pobreza, a casta e o género, e a compreender uma pessoa no seu contexto em vez do ambiente artificial do laboratório experimental. A produção de conhecimento em Psicologia precisa de incluir vozes e experiências de todos os cantos do mundo para descolonização e relevância global.
Outra abordagem essencial para a descolonização da psicologia é a metodologia da “Psicanálise Cultural Crítica”.
A psicologia dominante está a ser criticada pelo seu modelo biomédico de saúde mental, por desligar os indivíduos do seu contexto social e pela importação demasiado simplificada de métodos científicos, ou seja, pelo uso excessivo de experiências, manipulação de variáveis, quantificação, medição e análise estatística. A investigação psicológica substitui frequentemente as categorias sociais do mundo real por categorias não sociais que dão aos participantes na investigação uma identidade artificial. Uma pessoa exterior ao experimento desempenha múltiplos papéis sociais que conduzem a múltiplas identidades sociais de género, dinâmica familiar e estatuto social e económico da família. Mas numa situação experimental, o foco é estritamente mantido num problema particular, e as identidades e realidades sociais são ignoradas. Os autores escrevem:
“[A investigação psicológica ] explica fenómenos sócio-políticos complexos reduzindo-os ao nível da psicologia dos indivíduos, assumindo que estes existem autonomamente, independentes do meio político e social em que estão inseridos, e que o significado do primeiro é primário enquanto o do segundo é secundário.”
A Psicanálise Cultural Crítica pode ultrapassar estas limitações da psicologia convencional. A Psicanálise Cultural Crítica ajuda a compreender e analisar vários aspetos da experiência humana, da cultura e da sociedade que podem ser negligenciados pela psicologia convencional devido ao seu âmbito limitado. Os autores escrevem:
“A abordagem psicanalítica cultural-crítica orienta-nos essencialmente para uma análise sociopolítica da forma como a ideologia da raça, da classe ou do género constrói as subjetividades humanas e a individualidade.”
A psicanálise ajuda a descobrir significados escondidos, pelo que pode ajudar a revelar as relações de poder numa sociedade. Isto conduzirá a uma compreensão mais complexa e cuidadosa das questões sociais. Também reúne muitos discípulos e campos que conduzem a uma compreensão mais alargada da forma como os indivíduos constroem as suas identidades em relação aos aspetos culturais.
A Psicanálise Cultural Crítica ajudará, portanto, a alcançar um terreno comum entre as culturas e psiques do colonizador e do colonizado. Os autores argumentam que:
“Ao empregar este mecanismo psicanalítico, tanto os colonizadores como os colonizados adquirem conhecimentos sobre a relação complementar entre o Eu e o Outro, entre a sua cultura e a cultura do Outro, e assim ganham uma visão para transcender a aparente estreiteza da sua cultura. Outro resultado positivo deste processo é a aquisição da capacidade de ultrapassar a ilusão de superioridade e inferioridade relativamente ao seu Eu e à sua cultura”.
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