Ângelo de Lima: “Eu não estou doido”

Uma nova edição da obra completa de Ângelo de Lima, o poeta “louco” do Orpheu, famoso sobretudo pelo magnífico poema Pára-me de repente o pensamento, dá-nos a conhecer mais sobre a obra e da vida desta figura singular do modernismo português. Os seus coordenadores, Duarte Drumond Braga e Rui Lopo, reúnem neste volume editado pela Biblioteca Nacional de Portugal, juntamente com a obra de Ângelo de Lima, documentação importante para compreender os primórdios da psiquiatria em Portugal e, naquilo que me parece ser o seu contributo mais interessante, as mutações da “loucura” através da mitologização da obra e do autor.

Ângelo de Lima nasceu em 1872, no Porto, e morreu em 1921, aos 49 anos, no Hospital de Rilhafoles, em Lisboa, depois de ter passado mais de duas décadas encarcerado em hospitais psiquiátricos no Porto e em Lisboa. Lima assentou praça e, em 1891, foi enviado numa expedição militar para Moçambique, onde esteve sete meses. Sabemos, através de um texto autobiográfico, que em África provocou “distúrbios”, talvez sob o efeito do álcool, de acesso fácil (por lá andou “como quem diz, com as vísceras flutuando em vinho”, p. 190). Terá incumprido os “deveres quotidianos básicos” de um militar, mas foi um comportamento sexual considerado inadequado e grave que lhe mereceu o primeiro castigo, um confinamento militar.

Regressado ao Porto, colaborou com várias revistas literárias e frequentou aulas na Academia Portuense de Belas Artes. Viera fragilizado de África, com um gosto pela bebida e pela vida boémia. Nas suas palavras, por “irregularidades de conduta, por excitações irregulares do sentimento”, a sociedade portuense “acordando tardia da bronquidão de sentimentos mentais legais” (p. 190) encerrou-o no Hospital de Conde Ferreira em 1894. Passaria mais de três anos naquele que foi o primeiro hospital de alienados construído de raiz em Portugal. Durante este internamento, recebeu o diagnóstico de “delírio de perseguição num degenerado hereditário” (p. 298). Em Lisboa, anos depois, passou por um internamento breve na Casa de Saúde do Telhal. Em 1901, por um desacato no Teatro de São Luís, onde foi ouvido a dizer a palavra “pôrra”, foi levado a um juiz perante o qual negou o carácter obsceno da palavra. O juiz ordenou uma perícia psiquiátrica para determinar a imputabilidade do acusado. No relatório médico, Miguel Bombarda, então diretor do Hospital de Rilhafoles, somava aos “atos imorais”, indícios de uma “educação desviada”, a “sobreexcitação das meninges”, o hábito de falar sozinho e características físicas que indicavam estar na presença de um “degenerado”. Reconhecia-lhe algumas qualidades artísticas, mas uma análise minuciosa da sua escrita e o que entendia ser a fraca qualidade da sua obra pictórica, mostravam que “[o] fundo mental deste doente é um formidável desequilíbrio”. O veredicto: Ângelo de Lima era uma “alienado”; sofria de “loucura moral”.

Os coordenadores deste volume declaram o objectivo, louvável, de mostrar um Ângelo de Lima “para além da loucura”, noção que aparece em sub-título de um estudo sobre o homem, a obra e sua receção, sobretudo literária e cinematográfica. A ligação com o grupo do Orpheu é interpretada precisamente nesse sentido: “Orpheu adopta-o porque reconhece que ele está a fazer uma pesquisa linguística afim e que parte de uma tomada de posição filosófica semelhante sobre a relação entre a linguagem e a realidade, as palavras e as coisas” (p. 44). A ligação de Lima a várias correntes estéticas em voga e mesmo o seu Orientalismo reforçam a ideia de que o poeta participou da cultura do seu tempo, e para ela contribuiu, “para além da loucura”.

Há, depois, num processo histórico de reconfigurações mitológicas, várias desdobramentos da figura : o Ângelo de Lima de Fernando Pessoa, louco autor de um poema “dos maiores da língua portuguesa” (“Pára-me de repente o pensamento”); o poeta alucinatório dos Surrealistas; e o dos hermético-surrealistas. E também, já mais próximo de nós, o Ângelo de Lima do jovem António Lobo Antunes, que com ele partilhou, em tempos e posições diferentes, a passagem por África e pelo Hospital de Rilhafoles (rebatizado Hospital Miguel Bombarda), e cujo primeiro romance deveria ter tido por título a derradeira frase da autobiografia do poeta (“Este viver aqui neste papel descrito”). Enfim, o Ângelo de Lima, louco e humano, do cinema, de João César Monteiro a Jorge Pelicano.

A inscrição e reinscrição, ao longo de décadas, desta figura no imaginário português da loucura, até se tornar em emblema da fecundidade da loucura para a arte e do lado louco da criação artística, liga, afinal, em formas mutantes, o discurso do Orpheu a um ensaio de Lobo Antunes e Maria Inês Silva Dias, datado de 1974 (“Loucura e criação artística: Ângelo de Lima, poeta de “Orpheu” “). É talvez, por isso, difícil retirá-lo completamente do âmbito da loucura, sobretudo no campo literário, onde se movem os coordenadores desta edição. Aqui e ali ouvimos ainda ecos da patologização a que Lima foi sujeito, sendo o mais evidente a referência do prefaciador, Nuno Júdice, a “traços psicodivergentes” que se terão acentuado durante a expedição a África (p. 13) e à sua associação à noção datada de Arte Bruta (p. 13).

Este volume representa uma contribuição valiosa para a compreensão histórica do nascimento da psiquiatria: as peças processuais e clínicas reunidas mostram a sua origem pseudo-científica e a sua aliança com uma ordem política, colonial, social e moral repressoras. Em face dos documentos apresentados, não se poderá dizer simplesmente que esta resulta de um tempo e de “uma mentalidade”. Não. Alguns contemporâneos de Lima notavam já a violência e as contradições do manicómio. Veja-se o testemunho impressionante de Heliodoro Salgado, publicado em 1895 no jornal A Batalha, em que, a propósito da reclusão de Lima no Hospital de Conde Ferreira escrevia:

“Mas, em fim, elle lá esta, recluso. há mais de um ano já, o que, certamente, mais deve concorrer para lhe fazer acreditar que há quem lhe queira mal, quem tenha interesse em o fazer estar ali – exerbação [sic] da mania das perseguições.

O maricónio [sic] tem d’estas contradições. Serve para curar (quando serve), e serve para agravar o mal, quando o suposto doido é lucido, é intelligente, reflecte sobre a sua situação.” (p. 315).

Recentemente os Mad Studies têm chamado a atenção para a resistência dos reclusos em manicómios, bem antes dos movimentos dos anos 60 e 70 do século XX. Na realidade, desde o seu início. O caso de Ângelo de Lima é claramente um exemplo dessa resistência, já que em diversos momentos deixou escrita a sua indignação pelo internamento e tratamentos sofridos, a sua perplexidade perante o absurdo do alienismo e a sua vigorosa negação do diagnóstico. Nas suas palavras:

“Eu não estou doudo.

Tenho sido manejado como um puro manequim. Os seus meios de manejo têm sido – a mim aqui ao seu dispor abandonado por toda uma sociedade, a começar por aqueles que mais estrito dever tinham de tal não fazer – os seus meios de acção são, já a tortura, já a sugestão, já o veneno.” (Espólio de Carlos Braga, não datado; cit. p. 187).

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