Falsas Questões: Por que as pessoas ouvem vozes? (E por que precisamos de saber?)

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Traduzido por Celina Vilas-Boas

Na minha experiência, o mundo da “saúde mental” está completamente sobrelotado com aquilo a que gosto de chamar “falsas questões”. Literalmente todos os dias, pessoas participam em debates sem nunca questionar as premissas sobre as quais esses debates são fundados. É comparável ao meu marido aproximar-se de mim e perguntar “hey! Devemos encher o copinho da nossa filha de um ano com Pepsi ou Coca-Cola hoje?” seguido de uma discussão sobre as várias virtudes dos refrigerantes em disputa sem sequer questionarmos, em primeiro lugar, por que razão neste mundo ofereceríamos sequer refrigerantes à nossa docemente inocente e confiante criança. Por outras palavras, às vezes os maiores problemas podem encontrar-se não nos melhores argumentos de cada lado, mas no pressuposto das próprias questões.

O que aconteceria se simplesmente começássemos a perguntar “Porquê?” mais frequentemente? PORQUE acreditamos naquilo em que acreditamos? O QUE aconteceria se escavássemos além das mais típicas discussões e procurássemos um ponto de partida diferente? COMO chegamos a este ponto, e é este o correcto? E, claro, QUEM nos guiou aqui e como precisamente ganharam esse poder?

E, portanto, isto traz-me a Falsas Questões: Por que as pessoas ouvem vozes? (E por que precisamos de saber?).

Faço parte de uma organização (a Western Massachusetts Recovery Learning Community) que oferece um crescente número de formações Ouvir Vozes um pouco por todos os Estados Unidos. Estas formações são baseadas na filosofia e abordagem do Movimento Ouvir Vozes e possivelmente melhor descritas no website da Intervoice. Inevitavelmente, durante o decorrer destas formações, a conversação encontra o seu caminho para o “mas por que as pessoas ouvem vozes?”. Essa questão tende a surgir com a maior urgência depois de oferecermos desafios às perspectivas medicalizadas. (Como em “Espera, acabas de abalar o meu mundo. Todas as pessoas que conheço sempre disseram que isto era uma doença, e disseram-no com tanta certeza. Portanto, se não é uma doença, é o quê?”). Na maioria das vezes, esta questão não vem de pessoas que ouvem vozes. Vem de pessoas em papéis profissionais e – com maior frequência – de pais e mães. Como mãe, percebo o desespero por resolver as coisas para a sua filha ou filho (principalmente quando realmente não estão bem). Consigo empatizar (profundamente) com o impulso de lutar e procurar por respostas que possam aguentar os pais e mães nos momentos mais difíceis. Eu entendo.

Essa necessidade de saber vem de um sítio genuíno. Vem da (por vezes desesperada) crença de que “saber” é a porta para “ajudar”, e a necessidade de acreditar que existe (tem de existir!) uma resposta. Em alguns casos (particularmente, quando perspectivas de trauma estão a ser abordadas), pode até vir do desejo de ser absolvido da sua culpa, o que também é real e compreensível. Mas, e se é a questão completamente errada? E se focar-nos no “porquê” (pelo menos no sentido mais objectivo), na verdade, nos empurra para cada vez mais longe do “ajudar” a que mais pretendíamos aspirar?

Para falar a verdade, as formadoras do Movimento Ouvir Vozes com quem trabalho falam bastante sobre o “porquê”. Partilham as suas próprias histórias e como passaram a fazer sentido delas, e também oferecem exemplos de formas como outras pessoas fizeram sentido das suas experiências. Elas reconhecem (embora, lhes dêem menos ênfase) perspectivas médicas tradicionais, assim como o enquadramento do trauma, mas nunca páram por aí. Também discutem espiritualidade e um número de outras formas matizadas de como alguém pode vir a explicar tal fenómeno.

Contudo, fazem tudo isto desde o prisma de apoiar alguém a encontrar o seu próprio significado, o que mostra pouca ou nenhuma semelhança com as formas tradicionais de procurar por uma verdade globalizada. De facto, realmente a única resposta para “por que ouço vozes?” – pelo menos, desde o ponto de vista do Movimento Ouvir Vozes – deve ser “não sei”. E não de forma depreciativa, mas colaborativa. Como em: “não sei, mas eis como algumas pessoas lhe dão sentido…” ou “não sei, mas o que pensas do assunto?”

Reconhecidamente, não saber é assustador, e muitas pessoas não vão gostar dessa resposta. Ser-lhe dita “a verdade” por alguém que finge sabê-la, pode, sem dúvida, proporcionar algum grau de alívio (mesmo se só temporário). Mas, oferecer qualquer uma resposta como sendo “a” resposta, inevitavelmente, limita as opções da pessoa e pode conduzi-la para longe do que pode funcionar para ela. (Pode até conduzi-la na direcção de algo que causará muito dano.) Mais importante, simplesmente, não é honesto.

Na tentativa de estabelecer um equilíbrio e oferecer alguns exemplos de formas como as pessoas fazem sentido [das experiências], as nossas formadoras (e qualquer outra pessoa que participe em tal diálogo) também tendem a embater noutra barreira: as pessoas ouvem enquadramentos alternativos como “sintomas” ou notas laterais insubstanciais e, portanto, por vezes, sentem que não lhes foi dado qualquer enquadramento alternativo. Com mais frequência, independentemente do que digamos, as pessoas parecem traduzir as nossas palavras para algo nas linhas de:

  • “É uma doença ou é… outra coisa… mas não te dizemos o quê porque não sabemos e tudo o que estamos a tentar dizer é que provavelmente não é exactamente uma doença. Agora, a partir daqui, amanha-te. Xau-xau!”

ou:

  • “É uma doença ou é trauma. Tem de ser um ou outro, e como ainda ninguém descobriu nenhuma doença associada, é provavelmente trauma. Como? Dizes que não passaste por nenhum trauma? Tiveste uma infância bastante feliz e saudável? Ups, desculpa! Melhor começar a escavar até te lembrares de alguma memória traumática esquecida ou assim!”

ou:

  • “Hey, não sabemos o que se passa, mas não porque não exista uma resposta. É só que não sabemos porque não somos profissionais. Por isso, por favor, da próxima vez que fizeres uma formação, certifica-te que trazes um psiquiatra, pergunta-lhe todas as perguntas erradas e volta ao conforto do que já “sabias”: é tudo uma doença.”

A realidade é que aqueles que reivindicam “prova” e “conhecimento” específico e concreto serão, geralmente, ouvidos por cima de qualquer pessoa defendendo que a melhor (e mais verdadeira) resposta é não haver, de todo, uma resposta clara. (Isto é especialmente verdade em culturas onde uma comparativamente pequena mão-cheia de anos de estudos académicos são muito mais valorizados que décadas de experiência pessoal.) E, então, tentamos estabelecer um equilíbrio. Tentamos oferecer exemplos concretos enquanto ainda enfatizamos a importância de uma posição que, em última análise diz, “eu não sei a verdade para ti.” E quando alguém partilha a verdade a que chegaram para si própria (como Jacqui Dillon em Beyond the Medical Model), nós enfatizamos a importância de explorar o impacto real que a verdade tem na vida daquela pessoa em vez de avaliar a verdade a que chegaram em relação com o nosso próprio sistema de crenças.

Para esse fim, criamos um esquema para ajudar a concretizar o complicado equilíbrio de todas essas ideias e partilhamo-lo aqui para tua análise.

Qualquer pessoa é capaz de ouvir vozes dadas as condições certas (febre, isolamento, falta de sono, etc). Mas o “porquê”, frequentemente, não é tão claro, e a abordagem do Movimento Ouvir Vozes sugere que a resposta certa a esta questão será sempre “Eu não sei”. Isto porque:

  • Não existe nenhuma forma (um teste definitivo, etc) de saber a raiz do problema para todas e qualquer pessoa;
  • Apesar de, tipicamente, haver uma razão em que, comummente, mais se acredita ou que mais se aceita, essa razão pode mudar ao longo do tempo ou entre culturas. Isto vai mais longe para sugerir que as razões são baseadas mais em sistemas de crenças do que numa qualquer resposta correcta;
  • Contributos de centenas de milhares de ouvidoras de vozes por todo o mundo sugerem a importância de apoiar as pessoas a fazer sentido das suas experiências, muito mais do que ter um significado externo forçado nelas.

Só uma mão-cheia de perspectivas que as pessoas talvez usem no processo de fazer sentido das vozes inclui:

Biológica: A explicação para ouvir vozes mais comummente aceite na maioria das culturas ocidentais é médica ou de carácter biológico. No entanto, mesmo uma perspectiva biológica não significa necessariamente “doença” (apesar de essa ser a interpretação mais comum). Explicações biológicas podem também incluir hereditariedade que não baseada em doença (p.e. dizer que há uma ligação entre membros da família que ouvem vozes não é o mesmo que dizer que há uma ligação hereditária de doença, porque ouvir vozes não tem de ser abordado como doença ou como “mau”). Pode também incluir lesões físicas, ou “neurodiversidade” que fala simplesmente de cérebros que são conectados de forma diferente sem a suposição de que um é inerentemente melhor que o outro. (Talvez possa haver até uma característica evolutiva em ouvir vozes que tenha sido julgada como positiva ou negativa segundo o ambiente.) Infelizmente, a única perspectiva biológica que é amplamente discutida e promovida é uma baseada num modelo de doença, e é importante lembrar que – apesar de ser a explicação mais popular – nenhuma ligação biológica foi objectivamente ou cientificamente provada (p.e. nenhuma conexão genética definitiva ou processo patológico foi descoberto).

Sensibilidades: Em alguns casos, esta pode ser uma variância de uma perspectiva “biológica” em que é possível que a estrutura mental de algumas pessoas possam levá-las a ser mais sensíveis a certos elementos. Outras podem desenvolver estas sensibilidades a partir do ambiente. Independentemente disso, para algumas pessoas, sensibilidades a coisas como a falta de sono, comida ou químicos (etc.) no ambiente, ou drogas (tanto prescritas como outras) podem levar à experiência de ouvir vozes.

Trauma: O trauma é geralmente definido pelo indivíduo (mais ninguém pode realmente dizer o que o trauma é ou não para outra pessoa) e pode ser compreendido por qualquer coisa que leva a pessoa a acreditar que o mundo é um espaço inseguro incapaz de satisfazer as suas necessidades mais básicas (pelo menos, sem substancial adaptação por parte da pessoa). Pode ser o resultado de um grande evento ou de uma série de eventos mais pequenos ou condições (como racismo ou pobreza) que têm impacto cumulativo. Uma das mais comuns explicações alternativas à perspectiva biológica é baseada no trauma. De facto, pesquisa baseada no estudo Experiências Adversas na Infância (ACE, do original inglês Adverse Childhood Experiences) sugere que pessoas com pontuação igual ou superior a 7 têm uma hipótese 700% maior de ouvir vozes. Muitas das pessoas que experienciam ouvir vozes como resultado de trauma também interpretam a experiência como uma estratégia ou uma adaptação que as ajuda a sobreviver no mundo de alguma forma. Por exemplo, algumas podem vir a aprender que, mesmo uma voz assustadora tem o simples objectivo de avisar sobre um ambiente que pode ser-lhes perigoso (ou que, pelo menos, acredita que seja perigoso baseado em experiências traumáticas passadas).

Resposta de Stress: Próxima da perspectiva de trauma está a perspectiva da “resposta de stress”. De forma semelhante, uma “resposta de stress” pode surgir quando alguém percebe o mundo ou um evento como algo assoberbante, mesmo que não o definam realmente como “trauma”. Por exemplo, algumas pessoas percebem viver no ambiente caótico de uma grande cidade (com todo o barulho, movimento e correria) como sendo assoberbante a um nível sensorial. Se não são capazes de se mudar e viver num ambiente que lhes permite sentir mais confortáveis, podem desenvolver vozes (ou qualquer outra resposta de stress) como resultado disso. De novo, algumas podem ver isto como uma estratégia de adaptação (pelo menos, inicialmente), em vez de, necessariamente, uma má-adaptação.

Espiritualidade: As pessoas que fundaram o Movimento Ouvir Vozes desenvolveram algum do seu conhecimento inicial deste conceito ao comparar interpretações religiosas e médicas sobre ouvir vozes. Especificamente, Patsy Hage (uma ouvidora de vozes e fundadora da perspectiva Ouvir Vozes) perguntou a Marius Romme (seu psiquiatra e um dos dois co-fundadores) porque a aceitação da sua religião de que algumas pessoas podem ouvir a voz do seu deus era mais válida do que as vozes que ela própria ouvia. Isto levou Marius a reconsiderar as suas suposições sobre a experiência da Patsy (e a experiência das ouvidoras de vozes em geral). De facto, muitas religiões e enquadramentos espirituais incluem histórias de pessoas que ouvem vozes de antepassados, divindades e etc. Nesse contexto, muitos vêem esta experiência como um dom ou processo de despertar ou o encontro do verdadeiro eu, o que pode ser um processo significativo se a pessoa é apoiada para integrar essa experiência neste mundo de uma forma que lhes permita continuar a caminhar através dela. Há também uma perspectiva chamada de “despertar espiritual” que está a ganhar terreno no mundo, e fala dos desafios por vezes encontrados quando se está a passar por esse processo.

Sobrenatural: Esta perspectiva está, por vezes, relacionada de perto com uma perspectiva espiritual, porque (para algumas pessoas) as experiências sobrenaturais podem estar conectadas às suas crenças espirituais. De qualquer forma, esta perspectiva pode incluir quando alguém ouve a voz de familiares ou amigas falecidas, ou qualquer número de outras experiências incluindo, por exemplo, quando alguém acredita que as suas vozes são o resultado de uma transmissão alienígena ou a voz de algum outro ser sobrenatural. Esta perspectiva é a mais provável de ser desconsiderada como “sintoma” de doença e não como uma forma legítima de compreender a experiência de ouvir vozes. No entanto, para muitas pessoas, esta é uma forma poderosa de fazer sentido [da experiência] que tem um impacto positivo nas suas vidas. Para aquelas de nós que temos dificuldade em aceitar enquadramentos que nos parecem “estranhos” ou difíceis de entender de acordo com as nossas próprias crenças, pode ser do mais importante continuar a relembrar-nos que é, de facto, o impacto que as crenças de alguém têm na sua vida o que mais importa.

E como é que essa crença impacta a vida da pessoa? Chegar a um entendimento (quer baseado em sabedoria convencional quer em algo que parece muito distante disso) pode ser um importante e sanador processo e irá, frequentemente, requerer que as pessoas que apoiam se vejam livres das suas próprias noções pré-concebidas. Perguntas que podem ser úteis neste processo incluem: A pessoa está a investir nesta forma de pensar? Chegou a esta conclusão ou foi-lhe forçada? Esta crença tem alguma consequência negativa, e se sim, como é que isso parece? E impactos positivos? A pessoa quer explorar outras formas de fazer sentido das suas vozes ou outras experiência invulgares? É também importante notar que a forma como alguém explica as suas vozes é muito diferente do que desejam ou não fazer sobre elas.

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