Traduzido por Celina Vilas-Boas

Parabéns a você, querida Maria Madalena, parabéns a você.
Eu não sabia que a vida se estava prestes a tornar uma missão intemporal, magnífica, mas aterradora e, acima de tudo, interminável, para incorporar um direito de nascença que eu nunca soube que existia. Tudo começou quando eu estava a olhar através da janela de uma Barnes&Noble [nome de uma cadeia de livrarias] ouvindo a voz mais doce e angelical que eu alguma vez tinha testemunhado na minha “vida mortal” ou em qualquer outra realidade. Não importava que para o resto do mundo eu parecesse uma confusão desgrenhada, sem banho tomado (mas com MONTES de maquilhagem) e com a mesma roupa preta que usara todos os dias sem lavar durante, pelo menos, os últimos 6 meses. Isto seria o mais orientada que eu pareceria por quase um ano. Mas nada disso importava, não hoje, não no dia em que eu estava para renascer. Posso dizer honestamente que nunca senti uma corrente tão forte de orgulho e propósito inundar-me. Estava prestes a encontrar sentido na enorme dor e sofrimento que havia suportado ao longo de toda a minha longa vida de 20 e poucos anos. Finalmente, fez sentido que toda a minha vida fosse uma porcaria tão grande; porque Deus estava a preparar para mim algo maior que o entusiasmo que senti quando a [Segurança Social] cometeu um erro e me deixou ser a minha própria beneficiária representante* outra vez. Pude ir totalmente sozinha levantar o meu cheque mensal de incapacidade ao Walmart local [nome de uma cadeia de supermercados] todos os meses e até aí isso foi um dos pontos altos da minha existência.
Naquele momento, ao ouvir a doce melodia proclamando-me Maria Madalena, fui iniciada numa versão torcida, negra da escola do mistério gnóstico (ministrada através da santidade das vozes que eu oiço que outros não) onde eu me desprendia de preocupações terrenas para incorporar a minha nova vida como suma sacerdotisa e sim, esposa de Jesus Cristo.
Maria era, afinal de contas, uma das figuras mais incompreendidas na história do mundo, certamente uma identidade que eu partilhava. Posso não ter passado a minha vida após a morte a assistir enquanto a Igreja Católica me vendia como prostituta para reforçar a sua agenda de opressão das mulheres e as manter longe da liderança da Igreja (pelo que eles pública, mas discretamente, pediram desculpa nos anos 60), mas eu definitivamente sabia como é sentir-se a ovelha negra. Esquece ovelha negra, eu passei muito tempo da minha vida a ser a ovelha psicadélica.
Mas de pé naquela livraria, como a desajustada que era, eu ia finalmente pertencer. A missão estava apenas a começar e levar-me-ia à maior viagem da minha vida, onde houve pontos altos, baixos, exploração, magia e muitos fenómenos sagrados que são difíceis de replicar no papel.
Tudo culminou numa movimentada ponte de Boston quando o meu carro começou a ficar sem gasolina e uma voz comandou fortemente “Tu vais sair deste carro e caminhar em frente dos carros que vêm e sim, Maria, vão atingir-te, mas tu concederás finalmente prova ao mundo que Maria renasceu e que estás aqui para reinar no teu lugar por direito, como rainha. Eu prometo-te, Maria, não morrerás, elevar-te-ás aos céus e serás colocada de novo no mundo mortal para liderar com o teu esposo Jesus. Agora vai e destrói-te para criares quem estavas destinada a ser.”
Assisti a visões de Jesus na cruz e de mim própria em burgundy, ajoelhada aos seus pés chorando. Eu sabia que não havia outra escolha senão obedecer. Elas haviam-se provado merecedoras de lealdade. Saí do carro para o tráfego intenso na ponte e ouvi carros a apitar e pessoas a gritar sobre uma mulher louca na estrada. Sorri, sabendo que não podiam de forma alguma compreender; não foram escolhidos. Durei provavelmente uns dois minutos naquele cenário antes da ambulância chegar.
Nem sequer me lembro de falarem comigo ou perguntarem o meu nome. Lembro-me da polícia, dos bombeiros e dos paramédicos a atirarem-me à força para uma maca e nela me algemarem cada um dos meus braços. A partir daí só piorou. Levaram-me para um grande hospital de Boston onde eu implorei que ouvissem a minha história. Argumentei com eles para compreenderem que eu tinha um trabalho incrível, espiritual para fazer. Eu queria curar almas, até almas tão negras e imundas como as deles.
Por volta da altura em que mencionei as almas negras dos profissionais do hospital, dei por mim atada a uma cama a ser injectada com o que só posso imaginar ter sido a sempre popular mistura de Haldol, Ativan e Benadryl com que tive o infortúnio (e por vezes benção, devido aos ambientes a que eu frequentemente estava confinada) de ser injectada à força até não ser mais que um invólucro de uma pessoa babosa.
Lembro-me do médico das urgências se inclinar sobre mim e sussurrar que em breve iria esquecer tudo sobre Maria. Com aquela confirmação de invalidação, agarrei-me com mais força às minhas crenças, vozes e medos como se a minha vida dependesse disso. Depois da traumatização institucional começar, isso manter-se-ia por vários meses, as minhas vozes aumentaram a uma magnitude que era difícil de suportar. Havia narrativas variáveis – algumas protectoras, muitas sagradas e importantes, algumas assustadoras e malignas, e outras a ordenar-me que criasse problemas no hospital psiquiátrico. Também me deixou com mais crenças cómicas, desavergonhadamente engraçadas como aquelas que levariam a um casamento com um astronauta à beira da chaminé depois de dias a ler o Diário de Anais Nin a uma das minhas colegas pacientes.
As minhas vozes ensinaram-me a parar de pensar e a parar de responder e passaram a transmitir todos os pensamentos e interacções que eu iria alguma vez precisar através delas. Elas tinham todo o controlo porque era eu e elas contra o mundo.
Um tema recorrente era a falta de interacção dos profissionais do hospital comigo sobre as minhas experiências. Nem uma vez me perguntaram “Estás a ouvir vozes?” ou “Podes partilhar comigo o que estás a experienciar?” ou “O que estão a dizer?” ou “Uau, essa oração parece realmente significativa para ti, podes partilhá-la connosco?” Esquece tentar ajudar-me para fora do buraco, que tal, pelo menos, reconhecer que aquilo que eu estava a experienciar de forma tão intensa era uma experiência muito real para mim? Em vez disso, organizaram uma estratégia para tirar as vozes de mim com medicação e bateram-me até à submissão através do uso da força física e mental a cada oportunidade. Tal como aprendi desde aí, esta abordagem é por vezes chamada de “demonstração de apoio”. Mas quem estavam eles a apoiar? Certamente não a mim ou às minhas vozes.
Fomos apanhados por uma luta. Eles queriam que as minhas vozes desaparecessem. Eu não ia deixar as minhas vozes desaparecer, as minhas confidentes e protectoras, independentemente do que me fizeram.
Provavelmente mais assustador do que qualquer outra coisa nas minhas próprias únicas realidades, foi o dia em que ganhei consciência de que estava “a ouvir vozes”. Eu estava num programa, depois de me ser dada alta como um completo desastre. Enquanto estava sentada numa sessão de terapia de grupo vestindo um casaco velho e sujo de inverno que tinha poderes mágicos e a dançar ao som dos cânticos das minhas vozes, de alguma forma, absorvi a história de uma mulher – que ouvia vozes que outras pessoas à volta dela não ouviam. Não sei porquê, ou se o espírito santo estava realmente em mim, mas para minha própria surpresa, eu levantei-me e comecei a gritar “Sou eu, eu também estou a ouvir vozes, eu ouço vozes!” Uma crise existencial estava prestes a começar; a ameaça das minhas vozes me abandonarem era quase demasiado para eu continuar. Desci a correr os quatro lanços de escadas até à área de fumadores do programa, a tremer e a chorar que não queria que ninguém levasse as minhas vozes. Nesse dia tive muita sorte mais do que uma vez. Não só os profissionais do programa me levaram de volta e me tentaram convencer de que eu era forte o suficiente para ultrapassar este medo em vez de me internarem na unidade da porta ao lado, como mais tarde, naquela noite, quando a crise continuava e implorei à minha mãe para me levar às urgências e internar-me na minha zona de conforto, encontrei um médico que provavelmente mudou completamente a direcção da minha vida. Ele disse-me que ouvir vozes não era um problema e que muitas pessoas ouvem vozes e mantêm-se fora dos hospitais. Ele sugeriu que eu voltasse para o programa e descobrisse uma forma de viver com as vozes em vez de me esconder num hospital, onde o problema, as minhas vozes, ainda estariam à minha espera depois da alta.
Eu estava a sofrer de acatisia severa (a sensação de precisar de me mover constantemente) por causa dos antipsicóticos, e estava desesperada por água por causa da ridícula dose de lítio que habitava o meu corpo, mas apesar do meu terrível estado físico, eu absorvi o que o médico tinha a dizer.
Acalmei-me, chupando pedaços de gelo, e permiti-me ter um pensamento independente pela primeira vez em meses. Perguntei a mim própria “Será verdade, não é um problema ouvir vozes?”
Não sei qual foi a motivação dele, mas aquele médico plantou uma semente em mim que eu nunca pensei possível e que nenhum dos profissionais que geriam a minha vida me havia apresentado – que ouvir vozes era normal e não significava que eu teria que ser encerrada.
Escolhi ir para casa naquela noite. Pela primeira vez na história da minha vida, era avaliada numa urgência e podia sair por minha escolha, com os meus direitos civis intactos. Pelos vários meses seguintes, passei todos os minutos desperta a trabalhar com as minhas vozes. Tudo começou com um pingo de esperança de que eu podia encontrar algum ponto comum com as minhas vozes, uma ideia que alguém chamaria mais tarde de grandiosa.
A motivação de nunca voltar a outra unidade de internamento depois de todas as atrocidades do meu último internamento impelia-me adiante apesar do medo de que as coisas nunca mudariam. E que caminho solitário era este, a pensar que eu era a única no mundo a tentar desesperadamente sobreviver num mundo onde as vozes são rejeitadas e temidas por aqueles à minha volta. Ainda assim, continuei, mas nunca sonhei que criaria uma vida com sentido, paixão e propósito. Isso não era algo que alguém como eu pudesse ter.
Seria um longo caminho que envolveu um totalmente novo e estranho conceito na minha vida, apoio de pares, depois de uma amiga com quem eu tinha ido a um programa de tratamento de um dia me apresentou a Northeast Recovery Learning Community (NERLC) em Massachusetts Este, uma das 6 comunidades de pares “organizadas” ao longo de Massachusetts. Ali eu desbloqueei um conhecimento que mudou a minha vida, de que eu não estava enclausurada como uma vítima passiva como me tinha sido feito crer. Por certo, demorou bastante até eu conseguir algum tipo de colaboração com as minhas vozes, mas a NERLC deu-me, realmente, esperança de que eu podia não apenas sobreviver mas florescer fora dos programas e tratamentos que se tinham tornado a minha existência. Eu via todas as pessoas que trabalhavam ali a fazê-lo o que me deu esperança de me puder juntar a elas.
Então chegou o dia aleatório em que decidi voltar outra vez ao computador. Fiquei ali sentada, a olhar para o ecrã e a perguntar-me o que pesquisar. Aí surgiu na minha cabeça e comecei a digitar “pessoas que ouvem vozes e são normais,” “pessoas que ouvem vozes e não são loucas,” “ouvir vozes e não querer que desapareçam,” e seguindo por aí fora. Cada frase que digitava trazia Redes Ouvir Vozes à volta do mundo e a organização “guarda-chuva” que acompanha cada HVN [do original inglês, Hearing Voices Network] à volta do globo, Intervoice. Passei a primeira noite em claro desde antes da minha última hospitalização.
Ao longo das horas nocturnas, fiquei acordada a ler tudo o que pude encontrar. Não cabia em mim de contente: NÃO ESTAVA SOZINHA. Como é que isto era possível? Apesar de ainda ouvir as minhas vozes quase constantemente e de ter aprendido a colaborar e a encontrar poder nelas, eu andava com uma chaga sentindo vergonha por esta ser a minha realidade. Secretamente, temia não estar “recuperada” o suficiente para ser parte deste movimento, mas viria logo a aprender que aceitar as minhas vozes como parte da minha realidade única não significava que houvesse uma ausência de esforço. A vida como ouvidora de vozes não é sempre luz e amor, mas é, por vezes, um caos negro e conturbado que assustaria até os mais ávidos amantes de horror ou ficção científica. E sim, ambas formas de sobreviver estavam bem.
Implorei à Northeast Recovery Learning Community para me mandar a uma formação para facilitadores da HVN-EUA em Massachusetts Oeste. Acabei por fazer o curso duas vezes. Da primeira vez que fui, não estava totalmente preparada para o que iriam pedir de mim. Não disseram que eu era esquizofrénica ou esquizoafectiva nem nenhum outro diagnóstico que as pessoas me atiraram antes. Pelo contrário, pediram-me para suspender esses rótulos (e outra linguagem que o modelo médico usa para arrumar a minha experiência em caixas) durante a formação.
Eu podia ser normal por ouvir vozes, mas não podia, de forma alguma, abrir mão de me ver a mim própria como estragada e doente mental. Tive que voltar voando para a segurança da minha tal doença, mas o tempo que passei com as incríveis formadoras da Western Mass Recovery Learning Community ficou-me nos ossos. E eu tinha-me lentamente afastado de me ver a mim própria como fundamentalmente estragada e sem solução no mundo da “recuperação” (ou o que quer que prefiras chamar à viagem de descobrir que não és quem te disseram que és) e do apoio entre pares na Northeast Recovery Learning Community.
Da vez seguinte que voltei a Massachusetts Oeste, as coisas eram diferentes. O meu coração estava aberto e eu era livre para ser eu própria. Passei a facilitar um grupo Ouvir Vozes na minha comunidade e mais tarde descobri outras formas de me envolver no Movimento Ouvir Vozes. Mais tarde, juntei-me à direcção da Rede Ouvir Vozes dos EUA e tive a oportunidade de tomar parte no planeamento e preparação do Congresso Internacional Ouvir Vozes de 2017, pela primeira vez no solo dos Estados Unidos. Viver o sonho não começa sequer a descrever como foram os últimos 6 anos da minha vida.
A lição mais importante que aprendi de todos os anos que passei em infernal tratamento, e da minha actual posição como Par Especialista a tempo inteiro num hospital psiquiátrico é que ouvir vozes é visto como algo fundamentalmente errado e algo que precisa de ser diminuído ou até erradicado tão depressa quanto possível. E sim, há ouvidores de vozes que querem que as suas vozes desapareçam. Mas viver enclausurada naquele ciclo de querer afastar as minhas vozes e, simultaneamente, proteger a sua presença com a minha vida era como arder no inferno enquanto também via chover só ligeiramente fora de alcance para experienciar o efeito refrescante das gotas de chuva. No entanto, passei a perceber que, ao aceitar as minhas vozes com todas os seus defeitos fundamentais e idiossincrasias, começou o processo de me aceitar a mim própria.
Ao aproximar-se o 10.º Congresso anual Mundial Ouvir Vozes**, que está previsto ter lugar no berço do Movimento Ouvir Vozes, em Haia (Holanda), não posso evitar reflectir no tema deste ano “Viver com Vozes: Um Direito Humano”. Relembra imediatamente quão vital este movimento é, e o nível de loucura a que chega o sistema de saúde mental para nos convencer que não temos o direito de ouvir vozes. Ninguém deveria tentar tirar isso de nós, principalmente, sem o nosso consentimento. Em vez de tentar medicar as vozes até ao esquecimento, o mundo estaria melhor servido se fomentasse a consciência de que ouvir vozes é uma experiência normal, ainda que extraordinariamente única – uma que, se necessário, nós podemos e devemos trabalhar para reconquistar a nossa autonomia e encontrar poder “com” em vez de “sobre” as vozes. Que mundo maravilhoso seria se as pessoas que ouvem vozes estivessem livres de vergonha e medo de prisão ou hospitalização se escolhessem andar rua abaixo a negociar com as suas vozes em vez de se se sentirem obrigadas a obedecer. Tal como vim a descobrir, o esforço por colaborar com as vozes pode existir sempre, mas a miséria de se sentir completamente sozinha e sem apoio pode ser aliviada.
Eu facilito um grupo afiliado à HVN no hospital onde trabalho, e frequentemente digo às pessoas quando elas estão numa luta profunda com as suas vozes que realmente não há nenhumas garantias ou promessas que eu possa fazer sobre o caminho delas – e, frequentemente, lutas – como ouvidoras de vozes, mas posso olhá-las nos olhos e prometer que sei, com absoluta certeza, que não estão sozinhas. Há milhões de nós à volta do mundo; não vamos a lado nenhum. Negar a nossa realidade é o mesmo que ameaçar a nossa existência.
E, na minha experiência, rotular a minha realidade como errada fez com que me agarrasse com ainda mais força às visões, vozes, crenças e outras experiências únicas que tinham tomado conta da minha vida. Para muitas de nós, isso significa que nos é retirado o direito de mudar de ideias e explorar o que está a acontecer; efectivamente, somos mantidas bloqueadas como prisioneiras a realidades alternativas. No entanto, o movimento de base ouvir vozes tem continuado forte por mais de 30 anos e vai continuar a permitir a outros encontrar o seu próprio poder e reconquistar a liberdade perdida pela nossa sociedade fracturada que nos vê como o problema.
O nosso movimento, logo desde o início com Patsy Hage, Marius Romme e Sandra Escher, abriu caminho para as pessoas que ouvem vozes serem finalmente “vistas” como completamente humanas. Criando uma comunidade que nos aceitaria a nós e às vozes que ouvimos, completamente. Não temos que viver à mercê de um mundo que só aceita o que pode pessoalmente entender. Temos o direito a ouvir vozes e a não sermos mais escondidas no sótão do tabu e das experiências mal-compreendidas. A liberdade de ouvir vozes é, verdadeiramente, um direito humano fundamental.