Traduzido por Mattia Faustini de Mad in America
O Dr. Benedetto Saraceno é um psiquiatra italiano, defensor de reformas na área da saúde mental, e amigo. De 2000 a 2010, foi diretor do Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da Organização Mundial de Saúde (OMS). Foi na sede da OMS em Genebra, na Suíça, que conheci Benedetto, que se tornou rapidamente um amigo.
O Dr. Saraceno mostrou-se aberto a ouvir as nossas preocupações em matéria de direitos humanos. Por exemplo, levantámos a questão do eletrochoque involuntário, também conhecido como terapia electroconvulsiva, ou ECT, em que os médicos fazem passar eletricidade pelo cérebro. Embora muitos não saibam, os choques forçados continuam a ser praticados até hoje a nível internacional, contra a vontade expressa do paciente. Esta violação extrema encontra-se mesmo atualmente nos EUA, muitas vezes com recurso a uma ordem judicial e ao financiamento dos contribuintes.
Depois de ouvir falar da nossa campanha, o Dr. Saraceno, em nome da OMS, declarou ao público que os choques eléctricos involuntários deviam ser proibidos absoluta e internacionalmente.
Quando a MindFreedom International se empenhou numa campanha que apelava ao estado atual dos direitos humanos em matéria de saúde mental como uma emergência global, Benedetto utilizou repetida e publicamente a palavra “emergência” sobre a preocupação internacional.
Não estou a dizer que todas as posições do Dr. Saraceno estejam perfeitamente alinhadas com as minhas posições e com as do diversificado movimento dos consumidores/sobreviventes. E embora todas as minhas interacções com Benedetto tenham sido muito positivas, este ensaio não é uma investigação. Mas este amigo maravilhoso recorda-me: embora sejam muito poucos os aliados na indústria da saúde mental que estão dispostos a falar, eles podem ser de grande ajuda e devem ser valorizados.
O Dr. Saraceno acabou de se reformar. Ele concordou generosamente em ser entrevistado para o Mad in America.
David W. Oaks: Quais são os pontos mais importantes do seu aclamado apoio aos direitos humanos e à saúde mental?
Benedetto Saraceno: O meu trabalho na área dos direitos humanos desenvolveu-se em dois períodos diferentes da minha vida. De 1978 a 1995 trabalhei como psiquiatra em Milão, Itália. Trabalhei num hospital psiquiátrico público que era horrível como todos os hospitais psiquiátricos: miserável, violento, inútil.
Consegui criar uma pequena instituição para 24 “doentes crónicos”, ou seja, pessoas institucionalizadas durante anos num ambiente terrível onde os direitos mais básicos não eram respeitados. Na nossa pequena comunidade, tentámos criar um ambiente mais humano, sem restrições físicas, com portas abertas e um diálogo constante com as pessoas.
Conseguimos encontrar alguns apartamentos na cidade de Milão, onde algumas destas pessoas começaram a viver uma vida normal como cidadãos e não como doentes psiquiátricos. Eu estava muito isolado e não tinha muito apoio do meio profissional. Esta experiência modesta convenceu-me de que era possível criar uma alternativa radical às instituições psiquiátricas, combater a discriminação e ajudar as pessoas a encontrar o seu caminho como cidadãos que usufruem dos direitos de todos os cidadãos.
Fui muito influenciado pela experiência de desinstitucionalização conduzida por Franco Basaglia, um psiquiatra italiano que inspirou o processo de reforma radical do sistema de saúde mental italiano.
Na segunda parte da minha vida (1996-2010) mudei-me para a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o meu compromisso já não era mudar a prática psiquiátrica, mas sim mudar o “discurso” sobre a saúde mental. Trabalhei na tentativa de promover os direitos humanos em muitos países de baixo, médio e alto rendimento, através de legislação inovadora e de processos de desinstitucionalização, conduzindo a um maior respeito, liberdade e autodeterminação das pessoas com deficiência mental.
Tratava-se de um trabalho centrado nos governos, nos decisores políticos e no público. Nesta fase conheci o movimento de utentes e sobreviventes, e aprendi muito, nomeadamente, a ouvir mais e a ajudar a criar ambientes onde a liberdade fosse considerada como o ingrediente principal de qualquer terapia: “A liberdade é terapêutica”. Fiquei muito impressionado com o movimento em torno da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e com o intenso debate em torno da mesma. Na OMS trabalhei para produzir documentos e directrizes seminais inspirados nestes princípios.
Oaks: Pode contar-me um pouco sobre a sua infância e o que o fez começar nos primeiros tempos?
Saraceno: Quando era adolescente, tinha uma grande admiração por Sigmund Freud e a minha fantasia era tornar-me um psicanalista famoso, capaz de compreender a realidade emocional profunda das pessoas. Por isso, decidi estudar medicina e tornar-me psiquiatra e, eventualmente, psicanalista.
A primeira vez que visitei um hospital psiquiátrico (em Trieste) vi uma outra realidade: pessoas que viviam na miséria material e espiritual e no abandono, violência da instituição contra as pessoas internadas, restrições físicas, estupidez, burocracia, falta de projeto, falta de esperança. Apercebi-me de que a psiquiatria não era terapêutica, mas sim anti-terapêutica.
Acabei por conhecer Franco Basaglia, o líder italiano da psiquiatria anti-institucional e tornei-me um dos seus discípulos. Esta experiência inicial afastou-me da ideia de me tornar psicanalista e empurrou-me para uma forma crítica de praticar a psiquiatria anti-institucional e a promoção dos direitos humanos.
Oaks: Pode falar-nos brevemente sobre o movimento italiano?
Saraceno: O Movimento de Reforma italiano começou em 1968 com o encerramento do primeiro hospital psiquiátrico no nordeste de Itália. Esta experiência foi impulsionada pela ideia de que a instituição a ser combatida não era apenas o hospital enquanto edifício, mas a ideologia da psiquiatria (a medicalização do sofrimento humano, a lógica do diagnóstico, a forma irracional e abusiva de usar medicamentos psicotrópicos, a falta de interesse pelas necessidades e desejos das pessoas em dificuldades, a falta de planeamento de estratégias para ajudar as pessoas na sua vida material diária, etc.).
A partir de algumas experiências iniciais (Gorizia, Trieste, Arezzo, Ferrara, Perugia), o movimento expandiu-se e culminou em 1979 com uma lei nacional que obrigava ao encerramento de todos os 90 hospitais psiquiátricos italianos e à transferência dos cuidados para centros comunitários.
Podemos identificar seis barreiras que foram consideradas como impedindo o desenvolvimento de serviços de saúde mental inovadores e orientados para os direitos humanos:
- Persistência das instituições psiquiátricas.
- Pouco investimento na criação de equipas ou centros comunitários de saúde mental (dependendo de poucas camas em hospitais gerais para estadias voluntárias muito curtas).
- O papel dos cuidados de saúde primários não é suficientemente valorizado.
- As pessoas com deficiências prolongadas continuam em instituições em vez de viverem em alojamentos normais, reais e independentes.
- Falta de investimento na prevenção e na minimização dos efeitos dos factores sociais determinantes (pobreza, falta de educação, marginalização).
- Literacia em matéria de direitos humanos e promoção dos direitos dramaticamente insuficiente
Oaks: O que é que acha que o motivou a começar a apoiar os nossos direitos?
Saraceno: A minha principal motivação foi a indignação moral relativamente à forma como as pessoas com deficiência mental eram tratadas pela psiquiatria. A psiquiatria tem uma consistência epistemológica e moral muito frágil. A prática psiquiátrica é muitas vezes violadora dos direitos humanos, muitas vezes incapaz de compreender o sofrimento das pessoas, muitas vezes incapaz de prestar ajuda a pessoas que precisam de habitação, trabalho, dinheiro, respeito, inclusão e, em vez disso, recebem drogas psicotrópicas, electrochoques, contenção física, isolamento.
Penso que a principal questão para os sistemas de saúde mental e para a prática psiquiátrica atual é o “caso moral” representado pelas violações sistemáticas dos direitos humanos que ocorrem nos sistemas de saúde mental e nas instituições psiquiátricas. Apelo a uma emergência moral global.
Oaks: O nosso movimento inclui tanto pessoas que apoiam/utilizam o atual sistema de saúde mental, como pessoas que sobreviveram a traumas nesse campo. O que é que pode ajudar a fazer a ponte entre as pessoas que aceitam o sistema e as que o rejeitam? Na sua experiência, o que é que nos pode ajudar a unirmo-nos pelos direitos humanos?
Saraceno: Claro que, para uma pessoa como eu, psiquiatra, foi mais fácil colaborar com pessoas que apoiam/utilizam o atual sistema de saúde mental do que com pessoas que sobreviveram a traumas nesse campo. Penso que existe uma desconfiança compreensível em relação aos profissionais de saúde mental, mesmo que tenham lutado pelos direitos humanos. Há divergências sobre a natureza da deficiência mental e sobre o papel dos profissionais de saúde mental.
Compreendo tudo isto e muitas vezes senti que estavam a desconfiar de mim. Penso que a melhor maneira de fazer avançar a causa dos direitos humanos é encontrar pontos comuns de entendimento, objectivos comuns a perseguir, batalhas comuns a travar. As áreas de desacordo devem ser deixadas para trás e devemos evitar que os desacordos se tornem obstáculos ao potencial e às realizações comuns. À medida que envelheço, tento encontrar a unidade mais do que a fragmentação, porque o inimigo é grande, forte e vai aproveitar as nossas divisões teóricas.
Oaks: Ao reformar-se, gostaria de acrescentar alguma coisa sobre o futuro da revolução dos direitos humanos na saúde mental?
Saraceno: Tenho a impressão de que vivemos cada vez mais num mundo onde os direitos humanos são cada vez mais violados. Penso que devemos alargar as nossas alianças muito para além da saúde mental, devemos tornar a nossa batalha mais abrangente e menos sectária. Precisamos de mais diálogo interno para encontrar objectivos comuns e de uma luta externa mais dura.
Oaks: Pode dar alguns exemplos do seu trabalho na OMS, especialmente na área dos direitos humanos?
Saraceno: Antes de mais, gostaria de explicar uma das minhas principais convicções relativamente aos direitos humanos e à saúde mental. Penso que pode ser arriscado separar os direitos humanos da forma como os cuidados de saúde mental são prestados. Vejo o risco de os psiquiatras proclamarem a sua fé nos direitos humanos, afirmarem o seu apoio aos direitos humanos, PORÉM não mudarem a sua forma de pensar, praticar e organizar os serviços de cuidados de saúde mental.
O resultado é um mundo onde as palavras e os factos estão dissociados. Seguindo estas crenças, sempre considerei que trabalhar para os direitos humanos na OMS não era apenas publicar documentos sobre direitos humanos, preparar directrizes sobre a defesa e a promoção dos direitos humanos, gerar ferramentas destinadas a monitorizar os direitos humanos. Isto é importante e fizemo-lo na OMS (por exemplo, o livro de recursos da OMS “On Human Rights and Legislation” e o “WHO QualityRights Tool Kit”). Mas isto não é suficiente.
Devemos também mudar as políticas de saúde mental, os planos e a organização dos serviços. Neste sentido, considero exemplos do meu trabalho na OMS em prol dos direitos humanos, a contribuição para políticas de saúde mental inovadoras (no Sri Lanka, nos Territórios Palestinianos Ocupados, em Gaza, na Jordânia, na Argentina, no Brasil).
Para concluir, diria que o meu trabalho na OMS em prol dos direitos humanos teve duas dimensões: uma que definiria como normativa (directrizes, ferramentas de formação) e outra que definiria como cooperação técnica com os países (políticas, reorientação dos serviços de saúde mental de forma não restritiva e tornando-os orientados para os direitos humanos).
Oaks: Qual é a sua opinião sobre o facto de o nosso movimento recorrer mais à divisão de saúde mental da OMS para campanhas de direitos humanos?
Saraceno: Penso que a colaboração com a OMS deve ser encorajada porque uma sinergia entre o nosso movimento e uma agência oficial das Nações Unidas aumentará o nosso impacto e mudará a mentalidade do sistema de saúde global, multiplicando a nossa voz.
No entanto, considero fundamental que esta colaboração não dilua e enfraqueça o pensamento radical do vosso movimento. Por outras palavras, penso que o vosso movimento deve funcionar a dois níveis, um mais radical e independente e outro mais aberto ao diálogo e à ligação com as agências da ONU. Estas duas dimensões não são contraditórias, porque precisamos de ambas: pensamento radical de um lado e mediação e diálogo do outro.
Oaks: Pode dizer-me algo sobre si pessoalmente, o que espera fazer durante a sua reforma?
Saraceno: O meu futuro é bastante claro.
Tenciono dedicar o meu tempo a quatro actividades principais:
- Escrever literatura (contos, romances). Já publiquei um romance bastante longo.
- Pintar (essencialmente, fazendas e casas de campo). Uso pastel e acrílico.
- Passar tempo com os meus dois netos, Zeno (8 anos) e Diana (5 anos). Conto histórias e pinto com eles.
- Responder a muito poucos convites para falar sobre saúde mental (palestras convidadas). Mas esta quarta atividade deve ser extremamente reduzida.
Oaks: Sugeriu que a sede da OMS em Genebra deveria ter um monumento. Pode dizer-me mais?
Saraceno: Gostaria de sugerir um monumento em honra das pessoas com problemas mentais e deficiências que têm sido vítimas de marginalização, estigma, discriminação, abuso e negligência.
Temos monumentos que celebram médicos famosos, mas não temos monumentos que honrem os milhares de pessoas que foram discriminadas e maltratadas devido às suas condições mentais.
Seria bom recolher dinheiro para pagar essa estátua e depois fazer um donativo à OMS.
Oaks: Ambos somos admiradores de um italiano histórico, dissidente da mente, Giordano Bruno, que foi o último indivíduo queimado pela Inquisição, no ano de 1600. Pode dizer-me mais? Porque é que Bruno é importante?
Saraceno: Já dei-lhe o nome de Giordano Bruno, um intelectual que foi queimado em Roma por causa das suas ideias de liberdade. Considero-o uma espécie de Giordano Bruno, ou seja, um intelectual que dedicou a sua vida às suas ideias de liberdade.
É por esta razão que, quando vou a Roma, coloco flores debaixo da estátua de Giordano Bruno para o homenagear a ele e a si.
Nota: Partes desta entrevista foram originalmente produzidas para o grupo do LinkedIn Mind Justice, organizado por David W. Oaks. O Mind Justice promove pontes entre pessoas consideradas portadoras de qualquer deficiência mental, quer aceitem ou rejeitem esse rótulo.