Um novo estudo do Brasil desafia as práticas convencionais de saúde mental, defendendo uma terapia socialmente sensível para capacitar os indivíduos e abordar as desigualdades sistémicas.
Traduzido por Tiago Pires Marques de Mad in America (texto original)
Um novo estudo liderado por Dominique P. Béhague, da Universidade de Vanderbilt e do Kings College de Londres, juntamente com os seus colegas brasileiros, investiga o papel da terapia atenta ao social na abordagem de problemas de saúde mental.
Os seus resultados, publicados na revista Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology, apresentam um argumento convincente para uma abordagem transformadora da terapia, destacando as limitações das atuais políticas de saúde mental que se concentram predominantemente em intervenções a nível individual, negligenciando frequentemente as estruturas sociais e políticas mais amplas que contribuem para o sofrimento mental.
Com base no extenso estudo da Coorte de Nascimentos de Pelotas, realizado em 1982 no Brasil, Béhague e a sua equipa revelam como a terapia socialmente sensível, baseada nos princípios da medicina social latino-americana, pode capacitar os indivíduos a abordar e desafiar as forças sistémicas que moldam as suas vidas.
Os autores escrevem:
“O que parece ter feito a diferença para os jovens foram os terapeutas que responderam de forma flexível, reconheceram os limites da sua própria posição e mantiveram uma abertura dialógica à reflexão não estruturada e à produtividade do confronto.”
Acrescentam ainda que:
“Os jovens que regressaram à clínica de saúde mental, apesar de sentimentos intensos de desilusão e desconfiança, utilizaram o encontro terapêutico para se envolverem em debates sociais e políticos e explorarem novos modos de ação. As interações clínicas passaram a centrar-se não no tratamento da doença ou na redução dos sintomas, mas na criação de autoestima, consciência política e influência social.”
Esta investigação sublinha a necessidade de uma mudança na prática da saúde mental, enfatizando o papel da terapia não apenas na gestão dos sintomas, mas como um catalisador para o ativismo social e político, particularmente para as comunidades marginalizadas.
Apesar de uma maior atenção aos determinantes sociais da saúde mental global e às condições de género e raciais que afetam o bem-estar de um indivíduo, persiste um grande problema: negligenciar as estruturas que produzem as desigualdades na saúde em primeiro lugar.
Este estudo, conduzido por Dominique P. Béhague, Helen Gonçalves, Suélen Henriques da Cruz, Larissa de Cruz, Bernardo L. Horta e Natália P. Lima, analisa dados etnográficos e epidemiológicos de um estudo longitudinal interdisciplinar da Coorte de Nascimentos de Peltas de 1982, no Brasil, para demonstrar os limites da agenda dos “determinantes sociais da saúde”. Defendem que os cuidados de saúde mental devem basear-se em princípios e práticas de justiça social.
O problema com o método existente para lidar com as iniquidades, como o acesso aos cuidados de saúde, diz respeito à forma como os determinantes sociais são medidos. Os autores sublinham a ênfase colocada nos comportamentos e características dos indivíduos e não nas estruturas e sistemas responsáveis. Isso coloca a pressão e a culpa nos indivíduos, em vez de fatores como a acumulação de riqueza, a reprodução de hierarquias sociais e os sistemas políticos que justificam o capitalismo tardio.
Os autores escrevem que o Brasil é o lugar perfeito para explorar a relação entre a mudança social e a psicoterapia, particularmente esta coorte, uma vez que os envolvidos cresceram no final da ditadura militar em 1984 e testemunharam reformas económicas, de bem-estar e de saúde em larga escala.
Com este estudo, pretendem reformular a ideia do “social” para enfatizar a agência, a socialidade e a política e avaliar o potencial da psicoterapia socialmente sensível, em que os indivíduos que procuram cuidados “assumem a liderança no seu percurso terapêutico e procuram mudar as forças que moldam as suas vidas”.
Os autores reuniram dados etnográficos e epidemiológicos do estudo de coorte de nascimentos, um estudo prospetivo de 5914 crianças.
A componente etnográfica foi iniciada em 1997, quando os participantes completaram 15 anos, e incluiu observação participante e entrevistas semi-estruturadas e informais com jovens, as suas mães, familiares e amigos. Para além disso, foram realizadas entrevistas com prestadores de cuidados de saúde mental, funcionários da saúde pública e responsáveis políticos. A análise etnográfica centrou-se na relação cíclica entre a escolaridade, os cuidados de saúde mental, as conceptualizações do sofrimento mental, o envolvimento sociopolítico e a experiência com diversas formas de discriminação. Os autores utilizaram uma abordagem abdutiva de geração de teorias na sua análise e deram especial atenção às teorias dinâmicas do social.
A parte epidemiológica do estudo examinou as diferenças na participação sócio-política e no relato de discriminação em diferentes momentos entre os participantes que recorreram à terapia e os que não recorreram. Os participantes foram acompanhados em intervalos regulares, 2001, 2004-05, 2006 e 2012-2013. Foi-lhes perguntado se tinham consultado um psicólogo/psiquiatra e, em 2001, foi pedido aos jovens que indicassem o problema e a razão pela qual necessitavam de terapia. Foram utilizadas regressões bivariadas e multivariadas para examinar as diferenças na participação sociopolítica e no relato de discriminação entre os participantes que recorreram à terapia e os que não recorreram.
Por fim, foi utilizada a análise de modificação de efeitos para avaliar a hipótese de que os efeitos de capacitação social da terapia eram maiores para os jovens marginalizados e minoritários.
O estudo destacou os pontos fortes da reforma da saúde mental no Brasil, que resultou num alto grau de acesso aos serviços públicos, e com os profissionais a absterem-se de diagnosticar categoricamente os usuários dos cuidados e a evitaram a rotulagem; no entanto, o uso histórico de teorias cognitivo-comportamentais nas escolas para controlar os alunos continua a ter efeitos duradouros e prejudiciais.
Os resultados da análise das entrevistas mostraram que o espaço clínico não era apenas um local para procurar apoio e cuidados, mas servia também de local para alguns jovens desafiarem a discriminação que enfrentavam, resistirem aos rótulos nocivos que lhes eram impostos e continuarem a envolver-se na política subjacente a este sistema, levando a um aumento do envolvimento social para além da terapia.
Em concreto, quando os clínicos permitiram o debate social e encorajaram uma reformulação das experiências em termos narrativos e não comportamentais, juntamente com uma ênfase na criação de autoestima, consciência política e influência social, a experiência terapêutica teve mais impacto. Estes resultados dependem, nomeadamente, de um contexto terapêutico que não se centre no tratamento de uma perturbação, de terapeutas flexíveis e conscientes da influência da sua posição e que valorizem sessões não estruturadas que permitam o debate e o confronto.
“As discussões francas sobre os danos emocionais do domínio social e político desempenharam um papel importante na motivação do desejo dos jovens de praticar a mudança e de responsabilizar os seus terapeutas por fazerem o mesmo.”
“Ao contrário dos que dependiam sobretudo da medicação ou do apoio familiar para a sua saúde mental, os participantes que se envolveram numa terapia socialmente significativa tornaram-se líderes comunitários, ativistas ou aspirantes a políticos. É importante notar que também viam as suas lutas emocionais como parte integrante dos seus compromissos políticos e sociais.”
Os resultados epidemiológicos também mostraram que os jovens que entendiam os seus problemas em termos narrativos tinham 2,5 vezes mais probabilidades de denunciar a discriminação do que aqueles que não iam à terapia e que os jovens com baixos rendimentos e não brancos tinham mais probabilidades de enquadrar os seus problemas em termos comportamentais. Além disso, os autores descobriram que a relação entre os serviços de saúde mental e o envolvimento sociopolítico era mais forte para as pessoas com menos educação formal e rendimento familiar, mas não para as que se identificavam como pretas ou pardas, o que realça as práticas racistas profundamente enraizadas que continuam a existir no contexto terapêutico.
Este estudo oferece um olhar estimulante sobre o potencial da terapia socialmente sensível que se centra numa compreensão mais dinâmica do domínio social e permite que os indivíduos assumam a liderança enquanto navegam em contextos terapêuticos, políticos e sociais. Em vez de nos concentrarmos no diagnóstico dos indivíduos e dos seus comportamentos, devemos diagnosticar os problemas sociais e responsabilizar os responsáveis governamentais, os clínicos e as estruturas sociais discriminatórias pela reconstrução de uma sociedade justa.
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Béhague, D. P., Gonçalves, H., da Cruz, S. H., de Cruz, L., Horta, B. L., & Lima, N. P. (2023). A clínica politizante: Insights sobre ‘o social’ para a política e a prática em saúde mental. Psiquiatria Social e Epidemiologia Psiquiátrica. https://doi.org/10.1007/s00127-023-02573-2 (Link)