Espero o Carlos[1] na mesa do café Pão Doce[2], onde combinámos uma conversa sobre a sua vida. Tenho grande expectativa, pois é uma das primeiras entrevistas para o projeto sobre histórias de vida de pessoas com diagnósticos de doenças psiquiátricas crónicas. Para mim, é também a oportunidade de revisitar o bairro onde cresci e onde vivi mais de 20 anos. Desde criança que me lembro do Carlos subindo ou descendo a rua, indo ou vindo do café. Via-o ao longe quando deixava o prédio, de manhã, para apanhar o autocarro para a escola. Em manhãs chuvosas de inverno ou já sob o sol o quente de julho, o Carlos descia e subia com o mesmo passo, a mesma expressão neutra e por volta da mesma hora. Lembro-me de forma particularmente nítida de o encontrar sentado no café numa tarde escaldante de um mês de agosto, quando o bairro se esvaziava de gente, sozinho com uma mini vazia, um prato com cascas de tremoços e um Correio da Manhã dobrado em cima da mesa. Creio que ele simbolizava, para mim, a melancolia daquele bairro suburbano, dominado pelo alcatrão de ruas largas, pelo cimento pintado de branco e cinzento e pelos tijolos de prédios esparsos, onde alguns recortes tímidos de relva não chegavam a ser jardins e onde um jardim abandonado e de má fama não chegava a ser um parque. O seu nome, Vale do Silêncio, foi bem-apanhado. O pequeno café, no rés-de-chão de um prédio alto, era o único espaço público num raio de uns 15 minutos a pé, para lá do qual havia uma praça e um mercado. Desde então, o mercado entrou em declínio, sem possibilidade de competir com um grande centro comercial que se ergueu estrategicamente no centro do bairro. O café e o seu cliente mais fiel são dois resistentes.
Pois este homem tem uma história. No início dos anos 80, o Carlos, então com uns 30 anos, trabalhava como arquitecto num atelier de muito movimento no centro de Lisboa. Começou a sentir excessiva a carga de trabalho e a certa altura deixou de dormir. Depois de vários dias sem dormir, “eu cheguei ao trabalho e sentei-me no estirador e na secretária e pergunto-me ‘o que é que eu vou fazer?’. Não sabia o que é que havia de fazer. Sabia que havia problemas de ordem… do transtorno psicológico.” Procurou um psiquiatra no Hospital Júlio de Matos e foi-lhe proposto um tratamento de 12 electrochoques em duas sessões. O tratamento não resultou. Diz ter passado três anos sem dormir. Nunca mais voltou a trabalhar e vive com uma modesta pensão de invalidez, num dos prédios do bairro atribuídos à habitação social. Como muitas pessoas “inválidas” por motivos psiquiátricos, o Carlos é também cuidador, no seu caso, do irmão, também com um diagnóstico de bipolaridade, com quem partilha a habitação e para quem faz almoço e jantar. Na sua narrativa, a história da sua vida, depois do primeiro contacto com a psiquiatria, confunde-se com a sucessão de medicamentos receitados e das suas muitas combinações na expectativa de o conseguir fazer dormir e “estabilizar”. Anafranil, Nausilon, Alprazolam, Priadel, Clozapina… Na sua voz baixa, estes nomes, tantas vezes repetidos, começam-me a parecer fragmentos, quase bonitos, de um poema experimental em construção. Pergunto-lhe se está sempre pelo bairro. Responde-me que não: vai de 6 em 6 meses ao Hospital Júlio de Matos e, de vez em quando, nos meses em que pode comprar o passe, sai “para espairecer”. Não se queixa da solidão, mas sente tédio. Tem um “grupo”, os conhecidos do café com quem troca umas palavras todos os dias. Não se sente deprimido; não se sente eufórico. Vai-se entretendo. Tem a expectativa de ser chamado, em breve, a participar no ensaio de um novo medicamento.
No final da década de 50 e durante a década de 60, o movimento da Internacional Situacionista, liderado por Guy Debord e Raoul Vaneigem, apresentou um pensamento crítico do urbanismo das sociedades de capitalismo burocrático, que chamou de urbanismo especializado ou funcionalista. O bairro de Carlos, como tantos outros das periferias das grandes cidades, entra claramente nesta tipologia, onde prédios isolados, ou espaços comuns ou partilhados, reduzem as relações directas entre as pessoas e, por isso, as suas possibilidades de se encontrarem e de empreenderem acções colectivas. As preocupações principais do urbanismo funcional são a garantia da circulação de carros e o conforto da casa, segundo um modelo individualista de felicidade, mas onde as “as pessoas morrem de tédio” [3]. Os situacionistas propunham, em alternativa, um urbanismo unitário, centrado na criação de redes urbanas, emergente da criatividade das relações quotidianas, “suficientemente flexível para responder a uma concepção dinâmica da vida” [4]. Esta proposta de urbanismo, orientada mais para a construção de um ambiente do que para a solução de problemas técnicos, considera que a aglomeração é indispensável para que o meio tenha uma influência criativa sobre os modos de vida. À cidade criada pelo urbanismo funcionalista faltam aglomerações e ambientes, sendo o espaço social reduzido ao mínimo. A cidade do urbanismo unitário, pelo contrário, é densa, multidimensional, contém espaços comunicantes e favorece a emergência de espaços de jogo, facilitando a criação espontânea de diferentes ambientes e os encontros casuais e frequentes entre os habitantes[5].
Guy Debord alertava contra as “banalidades médico-sociológicas”, então já em voga, vocacionadas para a demonstração de conexões causais entre os projetos urbanísticos modernos e o isolamento emocional dos seus habitantes. O seu argumento era outro: esse urbanismo e os modos de vida que ele favorece, incluindo nas suas formas de alienação social e emocional, são já a expressão de um capitalismo burocrático que necessita do individualismo e da anestesia emocional para que apenas as paixões pelo trabalho e pelo consumo possam prosperar. Na realidade, o urbanismo, no sentido de aplicação integral de um projecto ou de uma doutrina sobre a organização de um espaço, nunca chega verdadeiramente a existir. O que existe, no sentido do concreto e observável, são as famosas “técnicas de integração”, “aplicadas inocentemente por imbecis ou deliberadamente pela polícia”[6], que resolvem alguns conflitos criando outros.
Não foi o bairro que causou a insónia, o sofrimento e finalmente a doença do Carlos. Mais: creio que actualmente o modo como aquele espaço isola e simultaneamente conecta ao possibilitar uma pequena sociabilidade funciona como um indispensável habitat protector. Porém, a história do Carlos, que é também a história da sua transformação num corpo anestesiado e constrangido, sempre disponível para ser objecto de “intervenções técnicas”, é inseparável do mapa de possibilidades e impossibilidades do bairro onde vive. As esporádicas dores de tédio de que por vezes é acometido são ainda uma réstia de uma potência de vida que décadas de medicação e isolamento não conseguiram aniquilar. Seria, por isso, de elementar humanidade que ele e todos os que estão na sua situação tivessem, ao menos, o passe gratuito e algum dinheiro para sair do bairro e a ele regressar.
[1] O nome é fictício.
[2] Idem.
[3] Constant, “A Different City for a Different Life (1959)”. In Tom McDonough (ed.), Guy Debord and the Situationist International. Texts and documents. Cambridge (Mass.) e Londres, The MIT Press, 2004, pp 95-102, p. 95.
[4] Ibidem, p. 96.
[5] Ibidem, p. 101.
[6] Guy Debord, “Editorial Notes: Critique of Urbanism (1961)”. In Tom McDonough (ed.), Guy Debord and the Situationist International. Texts and documents. Cambridge (Mass.) e Londres, The MIT Press, 2004, pp 103-114, p. 113.

