Estudo apela a uma nova abordagem da depressão centrada nos contextos sociais e culturais

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LALIBELA, ETHIOPIA - MARCH 31, 2019: Group of devotees during a Sunday service at Bet Medhane Alem, rock-cut church in Lalibela, Ethiopia

Um novo estudo etíope apela a uma reconceptualização da depressão, enquadrando-a não apenas como uma perturbação individual, mas como uma questão social profundamente enraizada em contextos espirituais, culturais e económicos.

Traduzido de Mad in America por Tiago Pires Marques

Um novo estudo publicado no International Journal of Social Psychiatry desafia as abordagens e intervenções tradicionais de saúde mental ao examinar a saúde mental global, a biopolítica e a depressão na Etiópia.

Liderado por Gojjam Limenih da Western University, o estudo explora as narrativas de 20 indivíduos etíopes diagnosticados com depressão e situa a sua experiência em contextos eco-sociais biográficos e culturais. Os autores defendem que se deve ir além de quadros interpretativos estreitos para as práticas globais de saúde mental e apelam a uma reconceptualização da depressão que dê ênfase aos determinantes socioeconómicos do sofrimento psicológico. A sua análise temática de entrevistas aprofundadas revelou o seguinte:

“As experiências dos doentes e a conceção da depressão estão profundamente interligadas com o contexto sociocultural, económico e espiritual da Etiópia. A depressão foi muitas vezes descrita como um estado de “incapacidade para a vida”, refletindo a complexa interação entre as lutas individuais e as pressões sociais. Integrando citações de doentes, demonstrámos nesta análise as formas como os desafios biograficamente específicos, as pressões sociais e o bem-estar mental são entendidos pelos participantes no estudo de acordo com as normas culturais e religiosas etíopes”.

Cerca de mil milhões de pessoas em todo o mundo são descritas como vivendo com uma “perturbação mental”, sendo que 81% delas residem em países de baixo e médio rendimento. A perturbação depressiva major (MDD) é a principal causa de perda de vida saudável, afetando mais de 350 milhões de pessoas em todo o mundo.

Estes números têm impulsionado a expansão de iniciativas de saúde global, como o Movimento para a Saúde Mental Global (MGMH) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) tem-se concentrado em aumentar o acesso aos serviços de saúde mental. No entanto, estes esforços enfatizam uma abordagem biomédica, dependem fortemente de intervenções farmacêuticas e negligenciam os fatores sociais, políticos e culturais que moldam a saúde mental. Como resultado, uma estrutura ocidentalizada e medicalizada tornou-se dominante a nível global, reduzindo as experiências de saúde mental a “disfunções biológicas”.

Para explorar melhor as perceções complexas e evolutivas da depressão a nível mundial, os autores propuseram-se examinar as influências socioculturais sobre o significado e a gestão da depressão entre os doentes diagnosticados com depressão em Bahir Dar, na Etiópia.

Os autores realizaram a sua investigação em dois estabelecimentos de cuidados de saúde terciários em Bahir Dar: O Hospital de Referência Felege Hiwot e o Hospital Especializado Tibebe Ghion. Ambos os hospitais têm desempenhado papéis fundamentais em iniciativas globais de saúde mental e têm estado envolvidos na implementação do Mental Health Gap Action Programme ( mhGAP) da Organização Mundial de Saúde desde 2008.

O estudo utilizou uma conceção de investigação qualitativa exploratória, recorrendo a um método de investigação etnográfica crítica. A recolha de dados primários foi efetuada através de entrevistas semi-estruturadas a 20 indivíduos diagnosticados com perturbação depressiva major (MDD). Pediu-se aos participantes que partilhassem as suas perceções da depressão, a forma como a definiam e entendiam, as suas estratégias de sobrevivência e as vias de procura de cuidados. Os autores também recolheram notas de campo através de observações e discussões nos hospitais do estudo para obter dados suplementares.

Abordagem Cultural-Ecossocial

A investigação foi orientada por uma abordagem cultural-ecosocial, que desvia o foco da investigação em saúde mental dos processos neurobiológicos dominantes na psiquiatria norte-americana. Em vez disso, enfatiza os fatores existenciais, sociais e culturais como centrais para a compreensão da saúde mental. Eles escrevem:

“No centro desta abordagem está o entendimento de que as condições de doença mental devem ser vistas como processos humanos fundamentais – processos que constituem uma intrincada mistura de cultura, biologia e psique, incluindo o eu, a emoção, a cognição, o género, a identidade e o significado”.

Através da integração das citações e experiências dos participantes, o artigo demonstrou como a sua compreensão da depressão está profundamente enraizada no contexto sociocultural, económico e espiritual da Etiópia, uma vez que os participantes descreveram a depressão como uma interação complexa de lutas individuais e pressões sociais.

Os autores identificaram as seguintes sete categorias para a forma como os participantes chegaram a reconhecer o seu estado de saúde: desafios psico-culturais, desafios religiosos/espirituais, desafios familiares, dificuldades económicas, perturbações comportamentais, abuso de substâncias e causas desconhecidas. Os participantes não atribuíram a sua depressão a uma única causa.

Em vez disso, identificaram múltiplos fatores, sendo que os fatores de stress social e estrutural crónicos – como a pobreza– contribuíram de forma significativa para a depressão. A depressão foi frequentemente descrita como um “fenómeno que muda a vida” que não pode ser aliviado apenas pelos serviços de saúde. No centro dos relatos dos participantes estava o conceito de uma “vida dificultada”, em que a depressão conduzia a uma sensação de estar preso nos desafios da vida, desencadeando um questionamento existencial e uma perda de objetivo. Estes relatos evidenciaram matizes na forma como os participantes explicaram as suas experiências, realçando o papel significativo dos fatores socioeconómicos, culturais, familiares e espirituais.

Os participantes descreveram os seus sintomas como inseparáveis de questões sociais mais vastas, o que torna as intervenções e os tratamentos médicos ineficazes. As suas experiências realçam a necessidade de mudanças significativas nas suas circunstâncias como uma componente crítica da recuperação. 

Reconceptualização da depressão

Os autores defendem uma reconceptualização da depressão, realçando a sua natureza complexa.

Sugerem que, para os indivíduos que enfrentam adversidades crónicas, a depressão não é um problema de saúde individual, mas uma resposta natural a desafios sociais mais amplos. Assim, escrevem:

“Nesta complexidade, a depressão parece tornar-se uma forma quase natural de reagir à angústia.

Ao mesmo tempo, tornou-se a expressão da situação: a dificuldade de viver. Quando a vida quotidiana parece tornar-se demasiado difícil de suportar e se reage a ela com a depressão, isso pode sugerir problemas sérios no seio da sociedade, e não principalmente, ou apenas, no seio dos indivíduos ou entre eles. Este entendimento exige que exploremos a depressão como uma forma de vida em si.”

Em conclusão, os autores defendem uma mudança não só nas respostas políticas, mas também na nossa compreensão da saúde mental, reconhecendo-a como uma experiência moldada por fatores sociais e ambientais.

A esta luz, a abordagem dos determinantes socioeconómicos da depressão é crucial e as abordagens descontextualizadas da intervenção em saúde mental são ineficazes. 

Concluem: 

“Como resultado, para compreender melhor a depressão e o sofrimento social em geral, propomos ou sugerimos uma mudança na nossa noção de investigação e na investigação e prática psiquiátricas, passando do que está errado com as pessoas afetadas pela depressão para o que lhes aconteceu. Este ponto de vista conduzirá a uma compreensão mais alargada da doença mental, uma vez que exige o reconhecimento da depressão como uma condição de toda a pessoa no seu meio. Precisamos de conceptualizar a doença mental (depressão) como uma experiência humana em contexto. É crucial compreender como os determinantes sociais afetam as pessoas e de que forma A depressão não é um facto bruto resultante de desvantagem social, desemprego, isolamento ou mesmo da própria violência, mas é moldada pela forma como os indivíduos compreendem e codificam a sua experiência, expectativas e crenças culturais”.

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Limenih, G., MacDougall, A., Smith, M. W. J., & Nouvet, E. (2024) Impaired in life’ Analisando os relatos das pessoas sobre depressão na Etiópia – Implicações para uma abordagem cultural-eco social da saúde mental global International Journal of Social Psychiatry, 00207640241280620

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