Traduzido por Celina Vilas-Boas
Quando era novo acreditava que o mundo falava comigo. Relâmpagos rasgavam o céu ao ritmo dos meus pensamentos. Anéis à volta da lua profetizavam o apocalipse. O meu gato piscava-me o olho para me fazer saber que ele compreendia. Nuvens separavam-se como cortinas para acolher um Deus radioso.
Durante a maior parte da minha juventude, esta profunda conexão com o mundo natural mistificava-me, puxando-me para dentro de florestas e agitando desenfreadamente a minha imaginação. Depois, aos 22 anos, finalmente, descobri o seu segredo.
No princípio desse ano tinha sido diagnosticado com uma doença mental grave. De repente, questionava – muitas vezes, dolorosamente – quanto do meu passado fora guiado não por livre-arbítrio ou conexão cósmica, mas por doença. À medida que procurava respostas, absorvi textos médicos, livros de auto-ajuda e as mais vendidas biografias. Tornei-me cada vez mais vulnerável às explicações biológicas para o meu comportamento – o teu cérebro está estragado – em parte porque estas teorias me absolviam de culpa e responsabilidade de acontecimentos que eram vergonhosos. Por exemplo, fiquei aliviado ao saber que bater repetidamente em padrões de três para salvar a vida da minha avó era causado por um sobreaquecimento do núcleo caudado. E senti-me menos maníaco ao saber que seis meses a contemplar a morte a todas as horas foram causados por baixa serotonina.
No entanto, o reverso da moeda – a criatividade explosiva, momentos de clareza divina, períodos de enorme sagacidade e magnetismo, comunicação com a Natureza – não era tão facilmente resignável ao determinismo biológico. Como ia eu fazer sentido deste paradoxo, que, ao mesmo tempo que algumas mudanças de humor são graves e incapacitantes, outras são ricas em significado e desenvolvimento?
De acordo com conceituada bibliografia, a Perturbação Bipolar é uma doença do cérebro. Isto significa que eu teria que negar razões científicas para fazer uma selecção minuciosa de quais extremos seriam diagnosticáveis e quais não com base no seu valor subjectivo.
Naquela altura, eu precisava de respostas, não de outra devastadora época de angústia existencial, então adoptei a perspectiva da doença mental e comecei a rotular quase tudo o que tendia para cima ou para baixo nas minhas experiências como sendo causado pela patologia na minha cabeça. Na verdade, reescrevi a minha trajectória de vida, lançando fragmentos da minha história para categorias clínicas de mania e depressão.
Um dia deparei-me com um texto que rotulava especificamente “acreditar que o vento está a comunicar contigo” como sintoma de Perturbação Bipolar. Imediatamente pensei na minha amiga. Ela também tinha sentido uma profunda conexão com o mundo e ela também estava diagnosticada com Perturbação Bipolar. Nós tínhamos partilhado momentos de profunda sincronicidade nos quais o vento dançou dentro das nossas conversas não-medicadas exactamente no momento certo, demasiado certo para ter sido uma coincidência.
Com a minha nova perspectiva, havia apenas uma explicação para esta experiência e outras de natureza similar. Eram simplesmente erros neuroquímicos desprovidos de significado.
Daí em diante, o mundo ainda falava comigo, mas eu deixei de ouvir. Quando o vento me envolvia num momento demasiado perfeito para ser coincidência, eu lembrava-me “O vento não está a falar contigo. Tu tens uma doença mental que te faz pensar o contrário.” Comecei a perder a confiança na minha intuição e no significado das minhas experiências, e a forma como eu fazia sentido do mundo subitamente tornou-se suspeita de fraude. Tal é o efeito de seres diagnosticado com uma doença que presume conhecer a tua mente melhor do que tu alguma vez conhecerás. Resignas a tua voz e tornas-te um céptico.
A minha resignação à previsão de incapacidade foi curta. Eu sempre cultivei uma forte independência que – quer consciente quer inconscientemente – guia as minhas acções e, eventualmente, procuramos desvincular-nos da doença mental. Mas primeiro eu tinha que fazer importantes mudanças na vida.
Naquela altura, eu cumpria o prognóstico de um típico Bipolar ao viver em casa do meu pai como artista desempregado. O meu recente diagnóstico era a desculpa perfeita para a inacção, mas eu sentia-me envergonhado e irresponsável por não tomar conta de mim como homem. Num esforço por impulsionar a minha vida, mergulhei num programa socialmente respeitável que forma e coloca licenciados promissores como professores nas áreas mais pobres do país.
Aqui estava uma oportunidade para recuperar a minha dignidade. Aqui estava um desafio para provar que eu podia ser bem-sucedido como qualquer outra pessoa. Aqui estava uma oportunidade para mostrar aos meus amigos e familiares que eu não era uma causa perdida, ingénuo ao mundo real e toldado pelo idealismo. Investi todo o meu orgulho na tarefa, lançando às urtigas, da noite para o dia, o meu rótulo de Bipolar e os estabilizadores de humor que vieram com ele.
A minha formação consistiu em 18 horas diárias de trabalho extenuante durante 5 semanas seguidas. No início, eu era animado, frequentemente elogiado pelos meus colegas pela minha criatividade e energia, mas no fim eu estava completamente esgotado.
Dirigi-me para a região que me foi designada de Dakota do Sul quase sem forças. Numa casa solitária na berma de uma estrada em terra batida, eu estava sufocado por insónias, paranóia, desconexão, sentimentos de abandono e total exaustão. Apesar de uma desesperada tentativa de me reavivar com exercício e meditação, eventualmente desmoronei e acabei num hospital.
Aqui está o que escrevi vários meses depois da experiência:
Quando entrei no hospital, lento como um fantasma, os braços ensanguentados e a cara coberta de agonia, reparei nos trabalhadores do hospital a observar-me. Senti isto como muito intrusivo e pus uma cara assustada, nervosa, frente às suas inquisições, tanto verbais como silenciosas.
“Entãããããããão, há quanto tempo és bipolar?” O animado sotaque de Dakota do Sul da médica tornou a pergunta ainda mais intolerável. Senti que a pergunta era cruel, invasiva, insensível, ignorante, dita com uma comodidade médica enquanto eu estava ali sentado, na obscuridade da minha miséria, sendo esperado que respondesse de uma forma coerente.
“Que tipo de pergunta é essa?” Respondi. Não fui conflituoso. De facto, eu estava assustado porque, no fundo, a pergunta fez-me sentir mais insano do que eu tinha reconhecido antes.
Mesmo agora, consigo sentir a humilhação de acordar naquela cama irregular: olhos pesados de lágrimas, pele rasgada por marcas de dentes, garganta revestida a carvão líquido, mão perfurada pela via intravenosa, pensamentos toldados por Haldol, coração picado pela culpa, mente aterrorizada e confusa. E lembro-me da médica a centímetros da minha cara segurando um comprimido entre o polegar e o indicador. “Isto vai te fazer sentir melhor,” sorriu afectadamente com vaga condescendência, como se o imenso sofrimento diante dela fosse apenas outro Bipolar que deixou de tomar a medicação… que vergonha.
Não consigo explicar por palavras o trauma daqueles meses. O que posso dizer é que há anos que uma marca me começou a aparecer no centro do peito e mudava de cor de acordo com o meu humor. Apesar de ter chegado numa gradação de castanho claro, no ano que seguiu Dakota do Sul o tamanho duplicou – como um vírus a espalhar-se – e escureceu para um vermelho sangue. Todas as manhãs que se seguiram eu via aquela marca no espelho e isso lembrava-me do meu absoluto fracasso na vida, tão inevitável como a minha respiração por trás dela.
Eu queria que o resto do mundo também visse a minha dor. Numa noite, depois de beber e rasgar o meu braço com as chaves do carro, peguei numa lâmina e rapei a cabeça – um acto altamente simbólico considerando que deixar crescer o cabelo me conduziu às minhas primeiras namoradas – depois agarrei numa faca e golpeei a minha cara, peito e braços.
Com isto e em conjunto com um segundo internamento hospitalar, estava a tornar-se demasiado difícil negar que eu tinha sérios problemas, e igualmente sedutor aceitar novamente a conclusão final de que a doença mental me explicava. Cansado e derrotado, deixei de tentar conectar os pontos e comecei a olhar para a minha crise em Dakota do Sul como o resultado de ter deixado a medicação, ter ficado maníaco e caído em depressão. Com essa associação em mente, fiquei aterrorizado de alguma vez deixar a medicação. E havia muitas pessoas para confirmar a sabedoria do meu medo. De facto, rapidamente descobri que todos os conselhos sobre Bipolaridade orbitam à volta de um núcleo inabalável: independentemente do que faças, independentemente do quão bem ou estável te sentes, NUNCA deixes de tomar a medicação, ou…
Esta forma de pensar é justificada pela crença de que a Bipolaridade é um incurável desequilíbrio químico no cérebro cujo equilíbrio a medicação ajuda a restabelecer. Considerando a presença abrumadora desta teoria nos meios de comunicação, textos médicos e entre profissionais e pares, eu assumi que estava comprovada por rigorosa ciência e apostei em tomar medicação para o resto da minha vida.
Até comecei a dizer abertamente a outras pessoas que estava a tomar “a minha medicação” como se a escolha fizesse de mim um “bom paciente” merecedor de inclusão e distinções. No entanto, ter-me tornado uma publicidade andante à indústria farmacêutica veio com o custo da repressão de conflitos internos. De facto, independentemente de quanto apoio e validação as pessoas me ofereciam, independentemente de quantas vezes eu me relembrava de que a minha era uma doença médica “como a diabetes” que requeria soluções médicas, os medicamentos nunca deixaram de incutir em mim os seus efeitos secundários não enumerados de vergonha, artificialidade, isolamento e dependência. É simplesmente impossível esquecer que és louco quando comes de cinco frascos de medicação todos os dias.
Ainda assim, eu não considerava desistir da medicação porque não podia pensar fora das minhas experiências. Para sobreviver, diminui as minhas expectativas e silenciei a minha vergonha.
E com isso varri os cacos da minha identidade, rastejando sem propósito por um novo mundo onde o limite vinha antes do céu e eu aceitei solenemente que a minha mente seria para sempre prisioneira para castigo do meu cérebro.
Depois de uma breve relação ter ressuscitado sentimentos de abandono, a marca no meu peito doía e a minha alma afundava-se. Em resposta, procurei um qualquer projecto para restaurar novamente o meu valor. Eventualmente, os meus esforços resultaram num filme sobre a Perturbação Bipolar. Vendi muitos dos meus bens para comprar equipamento de filmagem ao mesmo tempo que racionalizava a necessidade de forçar altos e baixos para tornar o filme mais realista.
Depois de meses de produtividade louca, lembro-me de uma noite em que não conseguia formar frases do princípio ao fim. Uns dias mais tarde escrevi uma nota de suicídio e escondi-a no meu colchão, depois internei-me num hospital.
As minhas hospitalizações anteriores tinham sido relativamente benéficas, mas esta foi pura destruição. Tirarem-me os cordões dos sapatos era, agora, degradante; apontar para rostos desenhados a linhas – feliz, triste, zangado – enquanto estabelecia um objectivo diário era, agora, depressivo; estar fechado lá dentro depois de um internamento voluntário era, agora, enfurecedor; ser-me dito para não ter conversas com pacientes do sexo oposto era, agora, discriminatório; e ser observado a cada quinze minutos durante as minhas noites de insónias era, agora, invasivo.
No entanto, a minha integridade estava enterrada debaixo da necessidade de ser querido, por isso eu comportava-me como um bom paciente, nunca conectando a minha humilhação a circunstâncias externas.
Depois de uma semana, menti à psiquiatra sobre o meu estado suicida e depois da alta fiz um voto: eu nunca voltarei a um hospital psiquiátrico, não importa que sacrifícios sejam necessários para ficar à superfície.
Para passar cada dia eu bebia apenas as cervejas necessárias para sedar os meus pensamentos. Para passar cada noite eu engolia comprimidos para dormir, ao entardecer. Apesar de ter permanecido dessecado por pensamentos suicidas durante meses, eu sabia por experiência própria que, eventualmente, a dor se dissolveria.
Havia também uma razão para ter esperança. Enquanto pesquisava para o já mencionado filme, conheci uma mulher que angariou dinheiro para eu participar no Projecto de Pares Especialistas Certificados do Estado que forma pessoas com diagnósticos psiquiátricos para trabalhar no sistema de saúde mental desde uma perspectiva de par. Apesar de não saber nada sobre esta linha de trabalho, sentia-me encorajado pela perspectiva de emprego.
Na formação de duas semanas, mantive a minha recente hospitalização em segredo e fui suficientemente capaz de esconder o desencantamento para atravessar a primeira semana de aulas. Aí, durante a pausa do fim-de-semana, caminhei 18 km até uma praia deserta. De pé, diante do oceano, eu estava desesperado por sentir a presença dela, mas não conseguia conectar-me. A Natureza havia sido separada dos meus nervos. Uma raiva imensa apoderou-se de mim e gritei até ao limite da capacidade dos meus pulmões, depois caí na areia como um peixe fora de água, murmurando e babando e ofegando.
Quando voltei à formação desabei a chorar com uma colega. Ela ouviu a minha confusão e perda e depois revelou-me algumas das suas próprias dificuldades, especialmente como escritora. Em referência a um projecto criativo em que estava a trabalhar, ela disse que “Se não acabar isto, terei falhado na vida.” Em qualquer outro momento, em qualquer outro contexto, as palavras dela teriam passado, mas, pelo contrário, elas viraram um interruptor.
De repente percebi que eu também podia falhar na vida, o que significava que também podia ser bem sucedido, o que significava que a vida não era um desembrulhar ao calhas, mas intencional, e se ela podia emergir de lutas imensas para se apoderar de significado, talvez eu também pudesse.
Esta breve sensação de optimismo levou-me através da segunda semana de formação e, depois de voltar a casa, comecei o moroso trabalho de me afastar de causas perdidas e em direcção a algum tipo de vida intencional, integrada.
Jim era um homem acolhedor de 60 anos, doce mas rigoroso, com uns olhos que frequentemente se enchiam de água por inspiração. Sentava-se num colchão de meditação no chão para olhar para mim de baixo para cima como gesto de humildade. Havia uma seriedade pela verdade no ar que valorizei imenso. Ele nunca reduziu nenhuma das minhas experiências a uma doença mental nem usou nenhum vocabulário diagnóstico, mas eu ainda recorria a esses contextos para fazer sentido.
Na nossa primeira sessão, eu despejei a minha história de Bipolaridade enquanto ele ouvia pacientemente, quieto como uma rocha. Nos minutos finais, ele respondeu: “Agora, eu gostava de falar-te sobre mim.” E então ele fê-lo, com as palavras exactas, com o tom sem parvoíces exacto, com a convicção exacta: “Steven, eu também sou um homem selvagem.” E ele falava a sério.
Daí em diante, eu soube que deixaria as questões práticas à porta. O nosso trabalho seria mapear densas florestas de arquétipos, sonhos, deuses, amor, masculinidade e loucura. Ele apresentou-me o trabalho de Carl Jung, cujos conceitos eram uma lanterna nos escuros reinos da psique.
Durante o nosso quarto encontro, por casualidade, lembrei-me de um sonho. Eu sempre sonhei de forma vívida, de manhã frequentemente acordava abalado pela complexidade do imaginário e a intensidade da mensagem. Apesar de ter conseguido retirar deles alguma verdade no passado, nunca consegui descodificar a sua função.
O sonho de que falei continha um búfalo, que apareceu perto do fim e me disse “Não tenhas medo.” Lembro-me de sentir que o sonho era inconsequente, mas o Jim tratou-o de forma sacra, sublinhando “Steven, não há nada inócuo no Wakan Tanka.” Wakan Tanka é o nome dado ao Búfalo/Grande Espírito pelos Lakota Sioux em cuja terra vivi quando estive em Dakota do Sul. Apesar de eu não ter feito essa conexão óbvia, o Jim ajudou-me a perceber que a aparição do búfalo no meu sonho significava algo. Eu estava a ser contactado.
Quanta mais atenção eu dava aos meus sonhos, mais eles respondiam e rapidamente comecei a navegar símbolos demasiado multifacetados para ser trivializados em palavras. O efeito imediato desta experiência foi uma cura profunda. Para mim, as mensagens abriam directamente fechaduras para elevação e expansão, mas, mais importante, tornaram-se um cordão umbilical para Deus.
Enquanto que os diagnósticos me desconectaram dos outros e das minhas próprias experiências, os meus sonhos remendaram esta separação reconectando-me à humanidade, ao divino, à Natureza e também à inseparabilidade das três. A sua natureza mitológica fez-me sentir importante novamente, como se estivesse a descodificar um grande segredo inacessível – ou, pelo menos, negado – pela maioria das pessoas. Havia claramente um perigoso elemento de satisfação do ego (“sou especial!”) incrustrado neste processo que teria de ser atendido mais tarde, mas naquela altura, o orgulho era absolutamente necessário para restaurar o meu sentido de valor para o mundo.
Claro que 9 meses de terapia não foram tudo momentos “Ah ha!”. Houve luto por relações e sofrimento por abrir as comportas da repressão e limpar as teias de aranha do meu passado. Mas o Jim tornou-se um pai nestes cenários, validando os meus segredos e amando-me pelo volátil espírito criativo que alimentava as minhas paixões ao mesmo tempo que me isolava dos outros. Uma vez ele até me disse que me amava, e falava a sério; um momento de humanidade nua que por si só remendou um rasgo no meu coração.
Todo o meu trabalho com a psique culminou numa experiência. Há anos que lia textos espirituais orientais, mas apesar de um breve namoro com a meditação em Dakota do Sul, ainda me faltava concretizá-lo. Numa noite decidi tentar outra vez e, ao sentar-me à luz da lua em frente a uma parede branca, uma onda de energia transformou-me, pressentindo uma dança ritualística de verdades e visões que abalaram a minha consciência até ao núcleo. Durante os dois meses que se seguiram, vivi debaixo de um transe colorido através do qual podia ver auras e padrões vívidos em todo o lado. No início, a meditação albergava esta experiência psicadélica, mas à medida que a intensidade se desvanecia, tornou-se para mim um canal para um mundo mais claro e directo.
Durante esta fase de desenvolvimento, usei a minha formação como Par Especialista num centro de recuperação progressiva para adultos com diagnósticos. Inspirado pelas belíssimas pessoas que ali vinham, comecei a arranhar o conceito de recuperação em saúde mental. Para mim, recuperação significava que eu podia viver uma vida com sentido com a doença. A minha própria concepção mudou de acreditar que a doença alimentava as minhas emoções para acreditar que a doença alimentava algumas das minhas emoções e actualizei a minha história de Sou Bipolar para Tenho Bipolaridade. Ainda assim, estava confinado ao alarmismo profético psiquiátrico de que o meu cérebro seria para sempre hostil no seu estado natural.
Depois, um dia, tudo mudou.
Depois de me mudar para Vermont para um novo trabalho, comecei a participar em encontros e formações com indivíduos que eram líderes no movimento de utentes/sobreviventes/ex-pacientes. Numa destas formações de uma semana, um dos facilitadores era um homem brilhante e humano cujo carisma empático ganhou imediatamente o meu respeito. A meio da semana, revelou-nos que fora diagnosticado com esquizofrenia e que não estava a tomar medicação. Até àquele momento, apesar de todas as minhas investigações e conversas, eu nunca tinha conhecido ou ouvido falar de alguém diagnosticado com doença mental grave que vivia com sucesso sem medicação.
Eu estava perplexo. Sondei o seu segredo e ele sorriu calorosamente dizendo “Eu acredito que se isto é algo que queres fazer, encontrarás uma forma.” A integridade de manter o seu caminho reservado deu-me força para encontrar o meu próprio caminho sem a sua influência. No entanto, a sua presença era suficiente – um exemplo vivo que a vida sem medicação era possível – para inflamar a minha vontade. Num segundo eu ia manter a minha dieta química toda a vida. Agora estava interessado em abandoná-la.
Abordei a descontinuação com precaução. Havia distância suficiente entre as experiências presentes e as crises passadas para esquecer a força de emoções ciclónicas. Eu estava aterrorizado de que o meu cérebro revertesse para o seu funcionamento doentio quando aliviado do seu policiamento medicamentoso. Cortei lentamente a maioria das minhas doses para testar os resultados enquanto mantinha um compromisso com um estilo de vida saudável como parte fundamental de me manter focado.
O processo completo durou seis meses, após os quais notei duas mudanças: a minha mente aguçou-se e o meu coração abriu-se. Ambos os factores eram espadas de dois gumes. Por um lado, podia pensar de forma mais clara e sentir um espectro mais alargado de vivacidade. Por outro, o meu restaurado intelecto levar-me-ia a enfrentar a situação gravosa do nosso mundo e as minhas sensibilidades crescentes iriam, em resposta, produzir novamente densas emoções.
Mas o verdadeiro desafio veio com a minha identidade. A princípio, estava demasiado ocupado a procurar sinais de deslizes mentais para me deixar levar em contemplações existenciais. Mas uns meses depois, à medida que percebia que estava mais clarificado e até relativamente enraizado, a pergunta inevitavelmente levantou-se: O que aconteceu ao desequilíbrio químico no meu cérebro?
Para encontrar respostas, comecei a investigar intensamente. Em vez de confiar – como no passado – em agências governamentais, grandes organizações, profissionais e livros que se tornaram sucessos de vendas para encontrar explicações sobre doença mental, fui directamente à fonte: jornais científicos que fornecem evidências empíricas que apoiam ou refutam as teorias psiquiátricas.
O primeiro e mais surpreendente facto que desenterrei foi que um desequilíbrio químico não foi nunca observado num cérebro humano. Definitivamente, pensei, isto tem que ser um erro, porque tudo o que li em todo o lado concluía que a causa da doença mental era um desequilíbrio dos neurotransmissores. Uma alegação tão omnipresente tinha que ser suportada por ciência rigorosa, certo? Descobri depois que não havia forma de medir “ao vivo” os níveis de neurotransmissores no cérebro humano, portanto não havia sequer nenhum “nível saudável” com o qual fazer comparações. Além disso, aprendi que se os desequilíbrios químicos existissem realmente, podiam ser causados pelas experiências da pessoa. Portanto, se eu tivesse um desequilíbrio, não havia forma de determinar se havia irrompido biologicamente causando as minhas crises psicológicas, espirituais e emocionais, ou se era uma reflexão biológica destas.
Rapidamente, percebi que, ainda que a teoria do desequilíbrio químico fosse uma simplificação grosseira de como o cérebro e a mente funcionam, estava a espalhar-se pelas massas numa onda de propaganda desenhada e financiada pelos gigantes farmacêuticos que beneficiam directamente das implicações do seu tratamento.
À medida que os meus pressupostos caíam por terra, investiguei mais profundamente o conceito de recuperação psiquiátrica. Descobri que quase todos os estudos a longo prazo indicavam que a maioria das pessoas diagnosticadas com doenças mentais graves recuperam significativamente com o tempo. Isto era novidade. Mais adiante, descobri que a medicação é ineficaz e até prejudicial para uma larga minoria de pessoas com diagnósticos severos e que alguns modelos de tratamento alternativos que usam pouca ou nenhuma medicação produziram melhores resultados que os tratamentos comuns. Isto também era novidade.
Mas se a doença mental é um problema do cérebro e se as pessoas que experienciam doença mental podem recuperar significativamente, o que acontece ao seu problema cerebral? É corrigido? Estava o meu corrigido?
Nesta encruzilhada, tropecei na neuroplasticidade. Em ciência, neuroplasticidade refere-se à capacidade natural do cérebro de mudar, de se adaptar e curar ao longo da vida. Aprendi que o cérebro era altamente maleável, mudando a sua estrutura e química em resposta a estímulos tanto internos como externos – desde pensar positivamente a experienciar trauma. Mais importante, aprendi que, utilizando o potencial natural do cérebro para se curar, havia pessoas a recuperar de AVC graves, de traumatismos cranianos, a ultrapassar dificuldades de aprendizagem, a reformular comportamentos obsessivo-compulsivos, a apagar a dor de membros-fantasma, a recuperar a acuidade da memória, a melhorar o processamento mental na velhice, a aprender a ver sem visão, a reforçar músculos só pensando neles, a usar meditação para criar estados neurológicos de menor tensão e por aí fora.
Se as pessoas podiam treinar os seus cérebros para ultrapassar estes problemas, porque não doenças mentais graves?
A base de investigação de neuroplasticidade e recuperação psiquiátrica era pequena, mas havia provas suficientes para sugerir veementemente que muitas das anormalidades biológicas relacionadas com sintomas psiquiátricos eram reversíveis ou podiam ser compensados por outras áreas do cérebro.
Então, naturalmente, perguntei: teria o meu cérebro mudado fisicamente? Teriam as mudanças no meu estilo de vida revertido a minha doença mental a um nível fisiológico?
Este era certamente o caso com obsessões e compulsões. Enquanto antes, constantemente, “ficava preso” à execução de rituais irracionais para aliviar ansiedade, anos a desafiar os meus pensamentos equiparam-me para me desembaraçar dos fluxos mentais habituais. Com o poder para observar e responder de formas diferentes, eliminei completamente a maioria das obsessões e compulsões. Estudos sobre o Transtorno Obsessivo-Compulsivo documentaram visualmente que tais esforços conseguem realmente reorganizar as conexões cerebrais.
Mas a Perturbação Bipolar era diferente. Era sempre apresentada como crónica, persistente e para toda a vida. Estava eu simplesmente em remissão como a literatura sugeria, um cérebro não medicado momentaneamente sólido, mas pronto a render-se à primeira invasão de tensão?
Eu não estava satisfeito com essa desesperançosa hipótese. Parecia um caminho escorregadio para o credo psiquiátrico de segurança – “Ninguém vence a Perturbação Bipolar” – contra qualquer pessoa que esteja bem sem medicação. Mudei então a pergunta de Ainda sou Bipolar? para Quem decide o que é Bipolar e o que não é?
Fiquei espantado como, por fazer simplesmente uma pergunta diferente, encontrei um mundo oculto de perspectivas alternativas. Mergulhei nas críticas à psiquiatria – sobretudo na sua história – e fiquei escandalizado pelo que encontrei. Percebi que a doença mental é um constructo socialmente definido, susceptível a preconceitos e julgamentos. De facto, descobri que o Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais utilizado pelos profissionais para diagnosticar pessoas não tinha qualquer objectividade médica e era, pelo contrário, uma compilação de opiniões sobre o comportamento que mudaram com as tendências sociais.
Não havia dúvida de que as pessoas com diagnósticos graves passam por um profundo sofrimento psicológico, emocional e espiritual. No entanto, a evidência de que tal sofrimento fosse causado por uma doença biológica era débil, não mais convincente do que a possibilidade de tal sofrimento ser causado por uma complexa reacção psicológica a esmagadoras condições de vida. Mas a psiquiatria biológica ganhara os direitos a definir doença mental, em não pequena medida porque satisfazia as necessidades ideológicas e ambições financeiras das companhias farmacêuticas, que, em troca, financiaram muitas das suas instituições, cientistas e bolsas de investigação. As intermináveis outras formas de compreender o comportamento – sociologia, psicologia, antropologia, mitologia, espiritualidade ou simplesmente a interpretação individual – foram subjugadas.
À medida que descobria e integrava esta informação na minha visão do mundo, aquilo que me tinha preso à doença mental afrouxou-se. Comecei a acordar para uma realidade diferente, uma onde eu usava termos como experiências em vez de sintomas, trauma em vez de doença, problemas em vez de distúrbio e neuroplasticidade em vez de desequilíbrio químico. Envolvi-me num processo de re-escrever a minha história de vida novamente, descartando o paradigma de doença e mudando a minha própria concepção de Eu tenho Bipolaridade para Sou completamente humano. Na mesma altura, experienciei um incidente de dolorosa discriminação que me relembrou do meu status na sociedade.
Candidatei-me a uma bolsa de estudos avultada para participar num retiro de trabalho respiratório com o inovador psiquiatra Stanlislov Grof e o psicólogo budista Jack Kornfield. A minha bolsa foi aprovada e foi-me então enviado um formulário médico padronizado. No topo dizia que o seminário não era apropriado para pessoas com determinadas condições, incluindo aqueles “com doença mental”. No entanto, assumi que os pioneiros facilitadores do seminário teriam em conta o meu estado actual que eu documentei em detalhe como evidência de que eu era “apropriado”. Após um extenso discurso com o assistente do Dr. Grof no qual defendi mais aprofundadamente o meu caso, o Dr. Grof rejeitou pessoalmente a minha bolsa de estudos com a justificação de que eu era um risco.
Fiquei totalmente devastado. Os meus enormes esforços para me libertar das restrições do diagnóstico, simplesmente, não eram suficientes para convencer os outros de que eu não era desabilitado. Independentemente da minha concepção de mim próprio, o meu historial psiquiátrico seguir-me-ia para sempre. Apesar de ter achado a raiva resultante difícil de navegar sem medicação, estava igualmente agradecido por poder sentir tal intensidade outra vez. No passado, teria utilizado estratégias para eliminar sentimentos fortes, mas desta vez usei-os como um catalisador para a acção e argumentação.
Durante o ano seguinte, traduzi a investigação que juntara em recursos escritos e apresentações. Trabalhei com outras pessoas que trabalham dentro da saúde mental para criar ambientes mais direccionados à recuperação ao mesmo tempo que trazia a minha nova perspectiva a grupos de apoio como facilitador e educador. Também comecei a partilhar a minha história publicamente e de cada vez revelava mais e mais da minha voz autêntica.
E algo estranho aconteceu: aquela marca no meu peito que tinha aferido a minha dor durante oito anos, que fora confirmada por uma dermatologista como um indicador de stress e não uma reacção alérgica, que espelhara fisicamente a minha mente quando esta se estilhaçara e o meu coração quando estrangulado, aquela marca de sofrimento desapareceu.
Passaram mais de cinco anos desde que deixei a medicação e sete desde a última vez que entrei num hospital à procura de ajuda. Nada tem sido estável, e tenho tropeçado por um caminho pedregoso que é por vezes esmagador, outras elucidativo. Assim é a vida, e estou grato por isso.
A cada dia a minha história cresce e muda de formas imprevistas, mas uma coisa se tem tornado clara na minha compreensão: Eu não sou nem nunca fui doente mental.
Sim, por vezes preencho todos os critérios para Perturbação Bipolar II no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, mas a conclusão de um pequeno grupo de académicos que criaram taxonomias do comportamento humano dificilmente representam a minha realidade e por isso eu não lhes concedo qualquer autoridade. Em vez disso, eu entendo as minhas experiências como complexas manifestações de carácter intrínseco, sociedade e cultura, relações, saúde física, processos biológicos, experiências passadas, energias colectivas e forças que estão para além da minha compreensão, e cada uma varia em grau dependendo da situação.
Mas nenhuma das minhas experiências é doente.
De facto, não posso acreditar que tenho algo dentro de mim chamado Perturbação Bipolar porque os meus pensamentos e emoções que poderiam ser assim etiquetados não são separáveis da minha individualidade e, por isso, não as definirei como perturbados. Isso seria negar e talvez odiar-me a mim mesmo. Tudo isso – os altos, os baixos, os pontos intermédios – sou eu. Não posso aplicar a mesma lógica de ter uma doença como a diabetes à míriade de sentimentos e experiências que eu essencialmente sou. De outra forma, teria que dividir o meu conteúdo mental e emoções – sendo que ambos escapam frequentemente ao meu controlo consciente – em compartimentos do que é saudável e do que não é de acordo com julgamentos arbitrários de médicos que eu nunca conheci e que, para ser honesto, são absurdos, desdenhosos do propósito existencial e prejudiciais à integridade da minha complexa existência. Também criam mais conflito interno.
Acredito que na maioria das circunstâncias, mas não todas, a redução de experiências à causalidade biológica seca a poesia da vida e nega que os extremos podem ser de facto o último, necessário e perigoso imprevisível passo antes de uma nova maturação.
Então, onde é que isto me deixa? Coisas vêm, coisas vão, e quando isso acontece, aí estou eu. O vento sopra, mas nunca mente. Quando o desespero surge, eu sou desespero. Quando a ansiedade surge, eu sou ansiedade. Se escolho recuar para um estado de testemunha cultivado pela prática meditativa, eu sou testemunha. Estados de existência – perigosos de julgar e dolorosos de negar, fluindo continuamente, cada um puxando em direcção ao outro por qualquer força que não compreendo. É o Grande Mistério, e eu sinto-me absolutamente bem sem o ter compreendido.
Isto não pretende negar o impacto de eventos extrínsecos no bem-estar. Como quase todas as pessoas que recebem um rótulo psiquiátrico, experiências traumáticas influenciaram-me e continuam a contribuir para o meu sofrimento.
Como sociedade, todos precisamos de acordar para a óbvia conexão entre trauma e perturbações psiquiátricas. Mas tal como já não estou disposto a conformar a minha crença de que o vento é comunicativo a um erro neuroquímico, não estou igualmente disposto a conformar os meus estados emocionais puramente ao passado. Com toda a honestidade, não há como sumarizar de forma simples porque entrei num hospital psiquiátrico em 2004. Tudo aconteceu ao fim de 24 anos – isso é 756 854 000 segundos – de estar vivo. E quem poderia compreender tal extensão?
O que é importante para mim agora é assumir total responsabilidade pelo que faço, saber que há narrativas que entrevêem a verdade e aprender e experimentar com viver em formas que são intuitivamente autênticas. E uma vez que a intuição e a autenticidade crescem, não há desenlace, não há esclarecimento, não há solução final ou recuperação definitiva do sofrimento.
E graças a Deus pela libertação que é saber que – tal como tu – eu sou abertamente humano: irredutível a constructos teóricos, insondável na minha plenitude, sentindo e celebrando com dor e amor, movendo-me em todas as direcções ao mesmo tempo, complexo e apinhado, um ser imperfeito e uma lasca da perfeição de Deus.
Lamentavelmente, é um diagnóstico que funciona para mim.
*Soteria refere-se a um modelo de recuperação terapêutico em ambiente social – nas chamadas Casas Soteria – desenvolvido por Loren Mosher.