Traduzido por Mattia Faustini de Mad in (S)pain (texto original)
Atualmente, um dos maiores desafios dos serviços de saúde mental em Espanha é o aumento do número de profissionais com doenças crónicas. Este texto tem como objetivo dar visibilidade a este problema, clarificar alguns conceitos e apresentar possíveis soluções.
A importância da categorização em psiquiatria é bem conhecida. Assim, entre os profissionais sãos, existe uma distinção entre: profissional são-são e profissional recuperado. Um profissional são-são é aquele que nunca esteve doente (até onde a evidência científica indica, não há casos conhecidos). Um profissional recuperado é aquele que passou com sucesso pelo processo de recuperação profissional. O facto de um profissional de saúde mental ser um profissional são (numa ou noutra das duas denominações) é essencial para evitar prejudicar e voltar a traumatizar as pessoas que recorrem aos serviços de saúde mental.
Por sua vez, entre os profissionais doentes, podem distinguir-se: os profissionais recuperáveis e os profissionais cronificados (também chamados de não recuperáveis). A categoria dos profissionais recuperáveis é a dos profissionais capazes de se readaptarem ao seu ambiente de trabalho se lhes for proposto um tratamento adequado que envolva um acompanhamento em situação de crise (a crise é inevitável para que a mudança ocorra). Estes profissionais podem beneficiar de uma intervenção atempada, entrando em contacto com o conhecimento leigo, com especialistas em primeira mão e com outros profissionais sãos, evitando assim a cronificação da sua enfermidade profissional. Os profissionais cronificados são aqueles que não têm acesso a tratamentos curativos e têm poucos recursos psico-educativos para facilitar a mudança. Esses profissionais geralmente se encontram em condições que geram incapacidade profissional, entre elas problemas de apego ao poder ou soberba. Estes são os que mais causam sofrimento na sua prática assistencial.
É de salientar que no processo terapêutico do profissional de saúde mental é necessário delimitar a responsabilidade que o próprio profissional tem em relação ao que lhe acontece. Neste processo existem vários elementos que o compõem e é necessário conhecê-los para estabelecer os critérios do locus de controlo. Entre estes elementos estão as questões laborais (lugar da categoria profissional na pirâmide organizacional do serviço, estabilidade no emprego, tempo de serviço, fama e reputação), as questões pessoais (carência económica, encargos familiares) e as questões sociais (paradigma de trabalho da instituição onde trabalha, rede de apoio que possui).
Entre as muitas motivações para um desenvolvimento saudável da atividade assistencial, as duas questões que seriam primordiais são apresentadas neste texto: a adesão aos direitos humanos (em oposição à adesão ao tratamento) e a consciência profissional (em oposição à consciência de doença). O défice de ambas as questões resulta numa maior probabilidade de práticas violentas, coercivas e/ou paternalistas que dificultam a recuperação do utente psiquiátrico.
A adesão aos direitos humanos pode ser definida na medida em que um profissional segue as indicações do paradigma da recuperação nas suas práticas de cuidados. Entre as suas referências jurídicas, sobressaem: a Convenção Internacional sobre os Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência, a Lei 41/2002 sobre a autonomia do paciente e o princípio da deontologia (primum non nocere). A consciência profissional refere-se ao conhecimento que o profissional tem de si próprio, do papel que desempenha no acompanhamento das pessoas que sofrem e dos riscos e benefícios que a sua prática de cuidados pode implicar. A seguir, apresentamos uma lista da sintomatologia habitual para ambos os constructos, a fim de facilitar o autodiagnóstico e, em consequência, mobilizar a ação (de novas práticas respeitadoras) e/ou a inação (de práticas prejudiciais).
Adesão aos direitos humanos | |
Sintomatologia positiva (*) | Sintomatologia negativa (**) |
Encarar a droga como uma escolha, não como uma obrigação | Impor a utilização de medicamentos psicoativos |
Não falar da pessoa sem a pessoa | Não compreender ou compreender mal os desejos da pessoa que está a ser cuidada |
Evitar o aconselhamento e/ou a psico-educação | Paternalismo |
Subscrição da campanha “0 Contenciones” | Necessidade de recorrer a imobilizações mecânicas |
Receio de fazer mal | Justificar o internamento forçado (pode ser considerado pior do que deixar a pessoa em liberdade) |
Fomentar e alargar as redes de apoio | Necessidade (a longo prazo e/ou ocasional) de isolamento |
Inclusão de pessoas com experiência na equipa de trabalho | Efeito de halo (a experiência passada leva a inferências, pressupostos e antecipações erróneas) |
Consciencialização e ação sobre a desigualdade de poder | Pensamento de grupo (profissionais que decidem pelos sujeitos psiquiatrizados) |
Equipa horizontal de profissionais que acompanham o processo | Equipa hierárquica de profissionais que lideram o processo |
Tolerância à incerteza | Prática defensiva |
Consciência Profissional | |
Sintomatologia positiva (*) | Sintomatologia negativa (**) |
Necessidade de desaprender | Dissonância cognitiva primária (entre o que se pensa e o que se faz) |
Assumir o dano infligido ao outro (por ação ou omissão) | Dissonância cognitiva secundária (entre o que se julga estar a fazer e o que se está realmente a fazer) |
Abordagem à horizontalidade na relação | Dificuldade/impossibilidade de ver as partes saudáveis nos sujeitos psiquiatrizados |
Utilização de manuais alternativos, como o “marco PAS” (Poder, Ameaça e Sentido) | Crença de que o diagnóstico fornece informações necessárias e/ou suficientes. Exercício baseado no DSM-V, na CID-11 e nos respetivos protocolos. |
Experimentar efeitos secundários (confiança, apreço, afeto da pessoa cuidada) | Desconfiança em relação às pessoas de quem gostamos (porque são mentirosas, más e/ou manipuladoras). Tendência para o duplo vínculo. |
Continuum: são/insano | Dicotomia: são/insano |
Atitude crítica e autocrítica | Abundância de enviesamentos (de autoridade, de confirmação, de informação) |
Atitude reflexiva | Adaptação hedonista (o profissional encontra-se imerso num estado de bem-estar que não lhe permite relacionar-se com os seus conflitos, contradições e incongruências). |
(*) Sintomatologia positiva: aqueles sintomas que nos fazem pensar que um profissional está são e que não estão presentes no profissional doente. Estes sintomas são positivos para a recuperação da pessoa cuidada.
(**) Sintomatologia negativa: aqueles sintomas que ocorrem quando o profissional está doente, tornando difícil para si produzir aquilo que deveria ser produzido, ou seja, a recuperação do próprio profissional e da pessoa cuidada.