A educação para os direitos humanos pode mudar as perspetivas dos estudantes de medicina sobre a psiquiatria

Um novo estudo explora a forma como a formação e o ensino centrados nos direitos humanos facilitam uma maior sensibilização e a defesa de mudanças na psiquiatria por parte dos estudantes de medicina. 

Tradução de Tiago Pires Marques

7 de junho de 2023

O ensino tradicional em psiquiatria negligencia frequentemente a questão dos direitos humanos. Um novo estudo qualitativo publicado na revista Health and Human Rights Journal tenta colmatar esta lacuna, analisando a forma como um programa de ensino dos direitos humanos orientado para os utentes dos serviços, destinado a estudantes de medicina, promoveu uma nova consciência e compreensão dos direitos humanos em relação à psiquiatria.

Através deste programa, os estudantes de medicina puderam refletir sobre os seus próprios preconceitos, examinar a forma como a sua educação e formação refletiam esses pressupostos e explorar a forma como gostariam de contribuir para as tão necessárias mudanças no terreno, de modo a respeitar a dignidade daqueles que servem. Os autores, liderados por Peter MacSorley, do Serviço de Saúde Mental, Dependências e Deficiência Intelectual da Nova Zelândia, escrevem:

“O ensino da bioética é uma componente essencial da maioria dos curricula das escolas de medicina, embora pouco evidenciado e avaliado. Especificamente no âmbito da psiquiatria, há questões críticas relacionadas com os direitos humanos que são frequentemente ignoradas ou negligenciadas, apesar dos apelos à ação há mais de duas décadas. A legislação sobre saúde mental que permite a detenção de doentes é a questão mais óbvia; no entanto, o uso rotineiro de coerção informal, os direitos de aceitar ou recusar tratamento, o direito à plena participação na sociedade e até mesmo direitos básicos como a habitação continuam a ser relevantes. Embora nenhum currículo médico possa abranger todos os elementos de que os futuros médicos necessitarão, a questão dos direitos humanos em relação à psiquiatria é fundamental para as boas práticas futuras, particularmente à luz das obrigações legais internacionais e das taxas crescentes de sofrimento mental nas comunidades.”

Os direitos humanos nos cuidados de saúde mental têm merecido uma atenção crescente desde a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) em 2006. O Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas e os relatórios do Relator Especial chamaram a atenção para os direitos humanos e a educação médica, descrevendo tanto os psiquiatras como os utentes dos serviços como “reféns de um sistema ineficaz” e apelando a “mudanças na educação médica” que abordem os desequilíbrios de poder e os “incentivos ao uso da coerção”, como o receio de ações judiciais.

A Universidade de Otago, na Nova Zelândia, consciente da necessidade de as escolas de medicina educarem os seus estudantes sobre os direitos humanos e as implicações das suas ações enquanto profissionais de saúde, utilizou novas estratégias na sua abordagem à educação. Os utilizadores dos serviços ajudaram a desenvolver e a ministrar módulos com o objetivo de “combater o estigma, reduzir a discriminação, promover a recuperação e melhorar os direitos humanos”. As intervenções educativas incluíram conteúdos centrados nos direitos humanos, estágios em organizações dirigidas por utilizadores dos serviços, abordagens centradas na recuperação e avaliações da aprendizagem.

No presente estudo, os investigadores examinaram o impacto desta formação e educação, especificamente em relação às experiências clínicas e a um workshop organizado pela universidade para estudantes de medicina no seu segundo ano de formação em saúde mental. O seminário, com a duração de seis horas, é orientado por utentes de serviços de saúde mental que têm experiências em primeira mão de violação dos seus direitos, que partilham com os participantes. O seminário dá ênfase à anti-discriminação e às interações positivas com a utilização dos serviços ao longo do tempo. Começa com uma introdução à CDPD e ao que ela representa na prática e, em seguida, inclui uma discussão sobre a utilização da Lei da Saúde Mental e a forma como práticas como a reclusão e a contenção violam intrinsecamente os direitos humanos, bem como estratégias alternativas para reduzir essas estratégias coercivas.

Foi pedido aos estudantes que escrevessem uma reflexão centrada nos direitos humanos à luz das suas experiências educativas e clínicas. As reflexões foram depois analisadas através da teoria fundamentada (grounded theory) para identificar temas nas experiências dos estudantes. Um total de 38 estudantes concordou em participar no estudo. A maioria dos estudantes eram mulheres (53%), europeias da Nova Zelândia (66%), com uma idade média de 24 anos. 22% dos participantes eram asiáticos, 10% eram maoris, a população indígena da Nova Zelândia, e 12,5% eram de outras etnias.

MacSorley e colegas identificaram duas categorias principais através desta análise, “compreensão do sistema” e “autorreflexão”. Dentro destas categorias, foram registados temas individuais.

A categoria “compreensão do sistema” incluiu as avaliações dos estudantes sobre questões clínicas, legais e éticas que surgiram durante as suas experiências de aprendizagem. Um tema identificado pelos investigadores nesta categoria foi “apreciar a militância (advocacy)”. Os alunos referiram ter adquirido uma maior compreensão das questões sistémicas, como o estigma, os desequilíbrios de poder e a tendência para o paternalismo por parte dos profissionais, o que os levou a refletir sobre a necessidade de defesa dos doentes.

“Apreciar a complexidade” foi outro tema que se enquadrou nesta categoria, com os participantes a refletirem sobre a natureza complicada dos cuidados psiquiátricos, observando que, embora a negação de direitos seja prejudicial, há alturas em que a negação de direitos é justificada e que navegar neste conflito ético é um desafio. Um participante escreveu:

“O dilema entre tratar um doente no seu “melhor interesse” e respeitar a sua autonomia e o seu direito de tomar decisões é o que me parece mais difícil de concluir. Na complexa área da saúde mental, sinto que isto pode por vezes ser um dilema impossível. É incrivelmente difícil porque consigo ver os dois lados deste dilema, e ambos têm boas razões por detrás… Ainda não tenho a certeza da resposta, e penso que não existe uma resposta “correta” como tal.”

O tema “desenvolver uma perspetiva pessoal” incluiu a ideia de que a proteção dos direitos humanos é moralmente necessária e que o domínio e a própria sociedade têm de mudar para permitir a proteção dos direitos.

A categoria global de “autorreflexão” consistiu na exploração pelos participantes dos seus próprios antecedentes, atitudes e preconceitos relacionados com os direitos humanos.

“Aperceber-se da ingenuidade” foi um tema identificado nesta categoria, uma vez que os participantes se aperceberam de que as ações em que se podem envolver como futuros médicos, tais como estratégias coercivas, são consideradas violações dos direitos humanos pelas Nações Unidas.

Esta perceção abriu os participantes para o processo de aprendizagem e para ouvir as experiências vividas dos utilizadores dos serviços, o que representou outro tema – o “poder da experiência vivida”. Ouvir as narrativas pessoais dos utilizadores dos serviços levou os estudantes a refletir sobre a sua própria moral à luz da participação em práticas que impedem os direitos dos outros. Um estudante refletiu:

“Foi devastador ouvir as histórias de muitos dos indivíduos com quem me cruzei e abriu-me os olhos para o verdadeiro sofrimento e conflito. Foi muito claro ver como a negação dos seus direitos humanos, através da depreciação e do preconceito, teve um grande impacto negativo na sua recuperação.”

As experiências no programa proporcionaram aos estudantes um “ensino estimulante”, outro tema identificado pelos investigadores. O envolvimento com os utilizadores dos serviços e as suas experiências vividas levou os estudantes a examinarem criticamente o seu nível de conforto com as práticas atuais em psiquiatria e permitiu-lhes considerar os seus próprios preconceitos e parcialidades interiorizadas.

O último tema que surgiu através da análise foi a “consciência da necessidade de mudança”, que atravessa as duas categorias principais de “compreensão do sistema” e “autorreflexão”. Os investigadores discutem a forma como estas categorias não são mutuamente exclusivas, mas antes se influenciam e informam mutuamente.

Por exemplo, à medida que os participantes se tornaram mais conscientes das injustiças associadas ao sistema de saúde mental, isso deu-lhes uma pausa para refletir sobre os seus próprios valores morais e a sua vontade de participar num sistema que viola os direitos humanos. Isso, por sua vez, permitiu-lhes considerar como eles, como futuros clínicos, poderiam navegar em dilemas éticos de uma forma que mantenha os direitos humanos e a dignidade.

Esta autorreflexão levou-os a tentar compreender o sistema a um nível mais profundo. O ciclo continuou e acabou por resultar no desejo dos participantes de mudar o sistema como um todo, incluindo apelos à defesa de direitos, a necessidade de proteger os direitos e a autonomia dos utentes dos serviços e uma sensação de desconforto com o status quo.

De um modo geral, o ensino orientado para os utentes dos serviços, com ênfase nos direitos humanos, para os estudantes de medicina foi eficaz para facilitar a obtenção de uma compreensão aprofundada das injustiças inerentes ao campo e levou-os a envolverem-se numa reflexão crítica sobre os seus futuros papéis e participação neste sistema, bem como a explorarem as mudanças que podem ser feitas para abordar estas questões e cultivar o desenvolvimento de práticas que mantenham os direitos humanos e a dignidade dos utilizadores dos serviços.

Uma limitação deste estudo é a utilização de um método qualitativo, o que pode dificultar a sua generalização a outros contextos. No entanto, não existe nenhuma ferramenta quantitativa conhecida para medir o ensino dos direitos humanos, e este estudo abre possibilidades de temas a serem explorados em futuras investigações quantitativas. Outras limitações incluem os constrangimentos relacionados com a recolha de dados, a pequena dimensão da amostra e a sua população predominantemente feminina branca, os limites de palavras associados à tarefa e a possibilidade de os alunos poderem ter sido influenciados nas suas reflexões pela procura de uma nota de aprovação e, por conseguinte, poderem ter-se retraído se tivessem opiniões diferentes.

Os profissionais das Nações Unidas e da Organização Mundial de Saúde têm feito apelos para que os direitos humanos se tornem centrais nas abordagens globais da saúde mental. No entanto, apesar de muitos países terem ratificado a CDPD, muitas políticas ainda se encontram em oposição direta aos direitos dos indivíduos com deficiência psicossocial.

A inclusão dos utentes de serviços nos cuidados de saúde mental e na investigação ganhou um impulso crescente nos últimos anos e conduziu a desenvolvimentos positivos em áreas como cuidados de saúde mental mais significativos, uma ênfase na escolha de perspetivas terapêuticas, novas abordagens à redução gradual dos medicamentos psiquiátricos, novas perspetivas sobre o impacto negativo da utilização prolongada de antipsicóticos na recuperação e conduziu à melhoria da qualidade e do valor da investigação em geral.

Além disso, a inclusão da experiência vivida na formação em cuidados de saúde tem demonstrado melhorar as práticas de tomada de decisão partilhada, o que dá mais apoio às conclusões de MacSorley e colegas. A inclusão de pessoas com experiência vivida em posições de liderança facilitará a democratização do conhecimento psiquiátrico, o que, por sua vez, permitirá que sejam feitas as mudanças necessárias no terreno para garantir que os direitos humanos dos utilizadores dos serviços sejam respeitados.

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MacSorley, P., Gordon, S., Gardiner, T., &Giles Newton-Howes, G. (2023). Consciência da necessidade de mudança: Uma teoria construtivista fundamentada da compreensão dos estudantes de medicina sobre os direitos humanos na saúde mental. Revista de Saúde e Direitos Humanos, 25(Link)

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