Neste ensaio, Bernabé De Vinsenci reflecte sobre o que acontece aos corpos quando uma sociedade se torna um manicómio.
Traduzido por Tiago Pires Marques de Loucura en Argentina (texto original)
Não há necessidade de literatura de ficção científica quando o mundo é um espetáculo de ficção científica. É quase impossível imaginar a consumação planetária porque, apesar de uma minoria esperançosa, nós somos a tração dessa consumação. Mesmo que isso nos pese, sentimo-nos confortáveis. O que gera a vida, ou o que acreditamos ser a vida, o conforto de nos sentirmos vivos, injecta-nos ao mesmo tempo doses mortais. Pouco ou nada nos apercebemos de que o prazer é absoluto e pouco ou nada importa, também, se o leme é a salvação ou a perdição.
Ganhar as ruas não é uma questão de urgência, exceto quando se trata de situações limite ou de datas especiais. Passámos de uma sociedade de disciplina e de controlo para uma sociedade de manicómios: as nossas casas, apartamentos ou quartos individuais são manicómios. Asilos onde, mesmo que duas ou mais pessoas vivam juntas, é por vezes estéril pensar na ideia de uma ligação, de dar tempo ao encontro ou à partilha. Corpos esparramados em poltronas, cansados, deitados em camas ou hipnotizados por aparelhos de entretenimento. As exigências do trabalho, pelo contrário, anulam a ideia de habitabilidade. Quando tentamos a habitabilidade, ela torna-se hostil. Há qualquer coisa entre “habitabilidade” e “utilidade” que se confunde. Raramente habitamos as nossas casas e, na maior parte das vezes, achamo-las úteis (para além de dormir, comer, lavar) longe dos nossos próprios objectivos e desejos, mas como a exigência útil de um Call-Center estimulado pela e para a interação virtual.
Somos “depositados” em nossas casas com ou sem conforto, mas isolados de um mundo cada vez menos promissor. Como se o mundo real, material, tivesse rachado. As discussões ocorrem longe da ágora, dos espaços públicos, e o resultado é que as redes, com a sua hiper-agressividade, acabam por gerar apatia, apatia, tristeza e a ideia de que não é possível fazer nada e que a vida só é possível através de exigências. Como se a pressão fosse o contrário de se deixar morrer.
É mais fácil insultar nas redes do que pessoalmente, por exemplo. É mais fácil dar opiniões nas redes do que nos espaços de opinião. A satisfação de publicar um acontecimento produz mais conforto, mais atração e mais emoção do que ir, por exemplo, ao próprio acontecimento. Talvez nos desassociemos depois de termos promovido o evento. Ou inventamos uma desculpa para não ir.
Assim, as ruas ficam à mercê de um trânsito acelerado que circula sob sinais de trânsito obrigatórios (muitas vezes violentos) e desrespeitosos, enquanto o espaço de lazer, de encontro ou de alojamento se torna um desperdício: é mais agradável tirar uma foto de uma praça em Paris ou na Ásia, qualquer lugar distante e inalcançável, do que ir às praças do bairro. É mais agradável financiar uma viagem a Paris e, uma vez em Paris, apreciar as fotografias que podemos tirar ou as selfies que podemos tirar na Torre Eiffel do que a presença da Torre Eiffel.
Se antes os consumidores tinham uma loja online, cujos produtos eram entregues por encomenda, agora podem visualizar a cidade e as suas praças a partir do ciberespaço e habitá-la sem sequer se deslocarem. Isto faz com que as pessoas se refugiem numa boa poltrona, num bom Smartphone ou num Iphone de último modelo.
É um dado adquirido que o “like”, o “likear”, com as variáveis de opiniões, insultos ou elogios, acaba por ter um efeito de ricochete. Com o efeito de ricochete, a ação de navegar, recuperar dados, dar opiniões gera o sentimento de uma certa “responsabilidade cívica”. Pelo menos é essa a sensação que se tem quando as pessoas “partilham”, “gostam”, ou emitem comentários ou opiniões, ou respondem a informações. Como se a pessoa que “navega”, e a sequência de petiscos tecnológicos, fosse um dado adquirido, um feito.
A nova “responsabilidade cívica” é a de um discurso residual: uma montanha de palavras, imagens e dados que se perde no ciberespaço. É isso que faz crescer a chamada pós-verdade. Uma história que nasce nas emoções e que é consensual na navegação, ao ritmo da reunião das formigas. A pós-verdade encontra-se em partes, em páginas de notícias ou portais, segundo a “livre crença” e a “livre liberdade”. Uma livre crença restrita e uma livre liberdade restrita. Talvez saibamos que é assim. Que não há dúvidas. Para os mais velhos a televisão ainda funciona, para outros as redes sociais, e para os últimos os youtubers conspiranoicos, ou os jogos em rede.
O que resta são praças vazias, parques com redes, carrosséis e balanços enferrujados, crianças nas saias dos pais com as cabeças apoiadas nos telemóveis, hiperactivas, hiperestimuladas, expulsas do mundo. E por sua vez: apáticas, aborrecidas, insatisfeitas. É quase impossível reunir-se nas ruas. Nas cidades, as folhas acumulam-se. Nos contentores cheios de lixo, as pessoas juntam papelão. Ou nos camiões do lixo.
As possibilidades perante o desconhecido, perante os outros, são cada vez mais nulas. Os poucos elos e espaços que sobrevivem tornam-se nichos. Por vezes, nem isso. Um casal vive na sua casa como num velho Ciber do início dos anos 2000. Com filhos que falam um espanhol traduzido pela presença constante de desenhos animados importados. Que contam as histórias dos jogos de vídeo e excluem aqueles que não lidam com o mesmo código do que é projetado no ecrã.
Quer seja a ansiedade de viver o imperdível, a hipocondria ou a indústria farmacológica, a verdade é que há cada vez mais doenças mentais e, para cada uma delas, é criada uma lista de medicamentos ou paliativos como ioga ou reiki, música para relaxar ou workshops manuais. A ideia é viver alienado não do mundo, mas do nosso corpo (apático, desesperado, aborrecido, sem desejo, deprimido) para que, pouco a pouco, a nossa subjetividade se torne virtual. Um número em bases de dados incomensuráveis. Que nos tornemos, finalmente, parte de uma história que pouco importa, mas que serve corporações empresariais, governos globalizados ou uma economia predatória.
É um lugar-comum falar dos telemóveis como “próteses”. No entanto, não se trata de uma prótese qualquer, como uma prótese dentária ou ortopédica. É uma prótese que organiza os nossos desejos íntimos, pessoais e políticos. Ela erige um novo tipo de sociedade e de regulação social. A publicidade, por exemplo, fornece-nos dia após dia o soro vital para nos fazer sentir vivos: mais consumo, mais sensação de que os nossos sacrifícios são úteis, rentáveis. Entretanto, vivemos a maré de ligações virtuais, paraísos virtuais e vidas virtuais. E o desejo do imediato ancora-nos. Ancora, e não só, frustra. Porque a natureza do desejo rege-se no lugar do inatingível. E o virtual nunca é atingível, a não ser pela visualização e pela afetação corporal e subjectiva, e permite também desperdiçar energia com o que queremos ou não queremos num estalar de dedos. Um exercício mental e físico devastador sem qualquer ligação ao mundo real. Podemos sentir-nos exaustos como se estivéssemos num emprego estafante, só por passar o dedo no ecrã.
Quanto maior for o desperdício, maior será a depressão, a apatia e a felicidade. Uma felicidade, uma depressão e uma apatia que não têm lugar senão no movimento de “likear”, “likear-me” ou “log-out”. Tomamo-nos por feitos sem termos feito nada por um mundo melhor. Sem ter feito nada por um mundo melhor.