Traduzido por Tiago Pires Marques de Mad in America (Texto original)
Neste blogue, analiso as funções do sistema de saúde mental no que se refere à estrutura económica e social da sociedade, utilizando o quadro económico de Marx. Concluo que o sistema de saúde mental é essencialmente um sistema de cuidados e controlo, que é legitimado pelo conceito de doença mental e que desempenha um papel particularmente importante nas sociedades capitalistas e neoliberais.
Este blogue resume um artigo que escrevi recentemente intitulado A Economia Política do Sistema de Saúde Mental: uma análise marxista (1). Quis perceber o que a análise económica de Marx significa para o papel do sistema de saúde mental e também considerar a relevância de algumas outras ideias marxistas fundamentais e alguma da vasta quantidade de literatura marxista sobre instituições sociais em geral, e sobre a saúde mental em particular.
Porquê Marx? Porque Marx olha através da superfície para a estrutura económica mais profunda do capitalismo moderno e, assim, traz à luz os papéis e as funções das instituições e das atividades, na medida em que se relacionam com os processos de produção e de troca que constituem a base essencial da vida social.
Mais importante ainda, Marx descreve o que é distintivo no método de produção capitalista e como este difere das formas de produção anteriores. A produção capitalista envolve a extração de mais-valia dos trabalhadores assalariados, o que significa que os trabalhadores têm de produzir o valor do seu salário e um pouco mais – e o pouco mais é a mais-valia que constitui o lucro dos capitalistas. Este é o significado técnico do termo “exploração” em Marx. É por isso que a indústria capitalista gravita em torno de locais onde os salários podem ser mantidos baixos, para que a mais-valia possa ser maximizada, mantendo os bens baratos para manter a quota de mercado.
Marx também revela como as instituições sociais evoluem para apoiar o sistema económico dominante. No que diz respeito ao sistema de saúde mental, algumas das suas funções são visíveis na maioria dos grupos sociais ou sociedades e transcendem determinadas disposições económicas, mas outras são mais específicas do capitalismo. O sistema moderno de saúde mental (ou grande parte dele) pode ser entendido como parte do Estado-Providência que começou a desenvolver-se no início do século XX para atenuar os piores estragos do capitalismo face à insurreição potencialmente revolucionária da classe trabalhadora.
Vários trabalhos anteriores influentes basearam-se em ideias e princípios marxistas, em particular o trabalho de Michel Foucault e Andrew Scull, e estou em dívida para com eles, ao mesmo tempo que abordo trabalhos sobre tendências mais recentes na política, na economia e nos serviços de saúde mental.
A perturbação mental como um problema social
Em primeiro lugar, considero brevemente o que queremos dizer quando falamos de doença mental ou perturbação mental. Sugiro que, em vez de equipararmos os problemas de saúde mental a condições médicas, pensemos neles como problemas de comunidades ou sociedades. Reconheço que as verdadeiras doenças cerebrais podem, por vezes, causar comportamentos desafiantes ou problemáticos, mas, como a maioria dos leitores deste blogue saberá, não há provas convincentes de que qualquer perturbação mental, à exceção das classificadas como “doenças neuropsiquiátricas” ou demência, resulte de anomalias específicas e identificáveis da atividade cerebral.
Concluo que aquilo a que nos referimos como “doença mental” é simplesmente uma coleção de situações desafiantes que permanecem quando aquelas que são passíveis de serem tratadas pelo sistema de justiça criminal e aquelas que são causadas por uma condição médica específica são retiradas de cena” (2). O processo de descoberta das funções sociais do sistema de saúde mental ajuda a clarificar em que consistem estas situações e o que as torna problemáticas.
As origens e as funções do sistema de saúde mental
Nos passos de Marx, o sistema moderno de saúde mental evoluiu a par do capitalismo, à medida que este emergia na Europa e nos Estados Unidos, e é útil considerar como surgiu e também o que o precedeu.
Em Inglaterra, a partir do século XVI, uma série de leis denominadas Lei dos Pobres [Poor Laws] permitiram aos funcionários locais gerir vários problemas sociais ligados à pobreza, incluindo os problemas colocados por pessoas que atualmente seriam rotuladas como tendo uma perturbação mental. A análise do material dos registos da Lei dos Pobres sugere que a Lei dos Pobres desempenhava duas funções principais a este respeito: permitia a prestação de cuidados às pessoas que não podiam cuidar de si próprias (e às suas famílias, se fosse o chefe de família que estivesse incapacitado) e permitia o controlo de comportamentos que punham em risco a paz, a harmonia e a segurança da comunidade, mas que não eram passíveis das formas habituais de punição comunitária ou de sanções legais formais. As Leis dos Pobres destinavam-se apenas às famílias que não eram suficientemente ricas para tomarem as suas próprias disposições e retomavam algumas das funções dos mosteiros destruídos por Henrique VIII, nomeadamente a prestação de cuidados aos doentes e aos deficientes. Além disso, formalizaram os mecanismos locais e informais de controlo social já existentes.
A ascensão do capitalismo e da industrialização em Inglaterra, nos séculos XVIII e XIX, atirou cada vez mais pessoas para a pobreza, e estas disposições locais começaram a tornar-se cada vez mais pesadas, fazendo com que a ideia de soluções institucionais entrasse em voga. Na sequência da Lei de Alteração da Lei dos Pobres de 1834, as pessoas incapazes de prover à sua subsistência foram obrigadas a entrar na proibitiva Workhouse vitoriana para obter assistência pública. O regime destas instituições foi deliberadamente concebido para ser duro e punitivo, de modo a que as pessoas suportassem trabalhos mal pagos em condições terríveis para não terem de recorrer a elas. Quando as pessoas recorriam à Workhouse, em desespero, eram motivadas a sair o mais rapidamente possível.
Os asilos psiquiátricos públicos surgiram neste contexto e foram concebidos para proporcionar um espaço mais agradável e terapêutico aos residentes ou potenciais residentes da Workhouse que sofriam de perturbações mentais. Já na Lei dos Pobres elizabetana se fazia uma distinção entre os pobres merecedores e os pobres não merecedores, com a ideia de que os pobres não merecedores eram os preguiçosos e desmotivados que podiam ser obrigados a voltar ao trabalho, enquanto os pobres merecedores eram os doentes e incapazes que não o podiam fazer. O asilo surgiu para atender a uma parte dos pobres merecedores e acreditava-se que o regime suave, mas estruturado (como se pretendia), ajudaria a restaurar a sanidade dos loucos, tornando-os assim aptos para o trabalho.
Por outras palavras, o sistema capitalista tornou necessário separar os pobres que mereciam e os que não mereciam, de modo a não prejudicar os esforços para tornar a maioria apta para a exploração no ambiente exigente do capitalismo primitivo. Os asilos proporcionavam um lugar para cuidar dos improdutivos e para conter os comportamentos perturbadores que pudessem ameaçar a harmonia social e tornar as outras pessoas menos dispostas ou capazes de serem exploradas.
Nas últimas décadas, as funções do asilo público foram privatizadas e redistribuídas por uma rede de fornecedores privados de instalações seguras, lares residenciais, equipas de cuidados domiciliários e, claro, famílias. Esta medida foi concebida para reduzir os custos para o sector público através da prestação de cuidados menos intensivos por uma mão de obra menos remunerada e menos qualificada, e para aumentar as oportunidades de obtenção de lucros.
O bem-estar
Para além das instituições e dos serviços de saúde e de cuidados associados, a provisão estatal para as pessoas com problemas de saúde mental inclui benefícios sociais. Tal como as primeiras Leis dos Pobres, as prestações sociais prestam assistência a pessoas incapazes de se sustentarem a si próprias, incluindo as que sofrem de formas de sofrimento mental. A literatura marxista sobre a deficiência tem defendido que o capitalismo cria dependência ao exigir que as pessoas sejam suficientemente produtivas para produzir mais-valia, de modo a serem empregáveis. Enquanto nas sociedades pré-capitalistas a maioria das pessoas podia fazer algum trabalho útil na comunidade, no sistema capitalista o trabalho só tem valor económico se atingir níveis de produtividade suficientes para gerar lucro para o capitalista. Por conseguinte, “uma das principais funções do Estado-providência é prestar apoio financeiro ou material àqueles que não podem trabalhar de forma suficientemente intensa para gerar mais-valia” (3).
Nas últimas décadas, o número e a proporção de pessoas que recebem benefícios por problemas de saúde mental aumentaram dramaticamente em associação com a ascensão do neoliberalismo. Em meados do século XX, como resposta à agitação dos trabalhadores e à 2ª Guerra Mundial, os salários e as condições de trabalho melhoraram. A partir da década de 1980, essas conquistas sofreram uma erosão e o trabalho tornou-se altamente competitivo e inseguro, levando muitas pessoas a abandonar a força de trabalho e a recorrer a subsídios. As pessoas tornam-se desmoralizadas e marginalizadas e são diagnosticadas com problemas de saúde mental. Consequentemente, os problemas de saúde mental são agora a razão mais comum para receber subsídios de doença e de invalidez, que, tal como os asilos, ajudam a manter “a população não trabalhadora quieta e isolada para que o resto possa ser efetivamente explorado” (4).
Hegemonia
Outro conceito marxista que é útil para compreender o sistema de saúde mental é a “hegemonia” – ou seja, influenciar o comportamento das pessoas através da persuasão e do consentimento e não da força. As funções anteriores do sistema de saúde mental – tanto a psiquiatria institucional como a assistência social – dependem, pelo menos por enquanto, da ideia de que os distúrbios mentais são condições médicas que, tal como outras condições médicas, surgem do corpo e são, por isso, independentes da ação do indivíduo. Isto significa que os desejos do indivíduo podem ser convenientemente ignorados quando o seu comportamento está a causar incómodo ou perigo. Ao colocar as pessoas no papel de doentes, a noção de doença mental também justifica o pagamento de subsídios de doença e de invalidez.
A “reformulação psiquiátrica da personalidade” (5) , como lhe chamou Nikolas Rose, tem vindo a ganhar força nos últimos anos graças aos esforços da Indústria Farmacêutica, e a maioria da população em muitos países absorveu agora a narrativa amplamente comercializada do desequilíbrio químico. A miséria e a preocupação, que são a resposta natural à pobreza, à discriminação e à insegurança, são transformadas em problemas médicos individuais. Desta forma, a ideia de que os problemas de saúde mental são doenças ou enfermidades pode ser pensada como uma “ideologia”, para usar outro termo marxista, que se refere a um falso conjunto de crenças que obscurecem a realidade da vida sob o capitalismo.
Conclusão
Embora seja apresentado como um sistema médico, com o objetivo de tratar distúrbios médicos, sugiro que as funções do sistema psiquiátrico consistem realmente em prestar cuidados e facilitar o controlo. Estas funções têm-se mantido ao longo dos séculos, mas expandiram-se com a evolução do capitalismo, que exige que os trabalhadores não só trabalhem para prover ou contribuir para a sua própria manutenção, mas também para produzir mais-valia. Independentemente das provas ou da falta delas, é necessário considerar os destinatários do sistema de saúde mental como doentes do ponto de vista médico, de uma forma que possa ser alinhada com a doença física ou a enfermidade, a fim de legitimar as disposições atuais. O conceito de doença mental justifica o uso da força contra pessoas em situações em que o sistema de justiça criminal não pode ser aplicado, e autoriza a prestação de apoio financeiro e cuidados a pessoas que não podem trabalhar ou cuidar de si próprias de outras formas.
A organização da produção no capitalismo gera muitos dos problemas a que chamamos perturbações mentais. Um sistema económico que distribuísse os recursos de forma mais equitativa, que proporcionasse segurança de rendimento, habitação, educação e cuidados de saúde e que permitisse a um maior número de pessoas participar de forma significativa na vida económica e social, eliminaria grande parte da atual epidemia de saúde mental, que está tão intimamente ligada à insegurança financeira, ao endividamento, à falta de habitação, à solidão, ao medo ou ao sentimento de fracasso e à falta de objetivos.
No entanto, ao contrário de alguns outros críticos da psiquiatria, acredito que algumas das funções do sistema de saúde mental continuam a ser necessárias em qualquer sociedade, embora isso não signifique que tenham de ser levadas a cabo como o são atualmente. A história sugere que haverá sempre pessoas que se tornam perturbadas de tempos a tempos e que precisam de cuidados e/ou contenção de algum tipo. O que é importante é confrontar estes problemas com honestidade, de modo a podermos abordá-los da forma mais justa e humana possível.
- Moncrieff J. The Political Economy of the Mental Health System: A Marxist Analysis. Front Sociol. 2022;6:771875. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/35242843
- Moncrieff J. The Political Economy of the Mental Health System: A Marxist Analysis. Front Sociol. 2022;6:771875. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/35242843
- Moncrieff J. The Political Economy of the Mental Health System: A Marxist Analysis. Front Sociol. 2022;6:771875. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/35242843
- Moncrieff J. The Political Economy of the Mental Health System: A Marxist Analysis. Front Sociol. 2022;6:771875. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/35242843
- Rose N. Becoming neurochemical selves. In: Stehr N, editor. Biotechnology, Commerce and Civil Society. New Brunswick, New Jersey: Transaction Publishers; 2004. p. 89-128.
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Mad in Portugal e a rede Mad in the World tem blogues de um grupo diversificado de escritores. Estas publicações foram concebidas para servir de fórum público para uma discussão – em termos gerais – sobre saúde mental, psiquiatria e os seus tratamentos. As opiniões expressas são as dos próprios autores.