Tradução por Mattia Faustini de Locura en Argentina (texto original)
Numa publicação influente, Laurence Kirmayer explora a forma como as narrativas e as metáforas culturais moldam a nossa experiência em matéria de saúde mental e recuperação.
Num artigo académico de grande impacto, Laurence J. Kirmayer, um dos principais académicos na área da psiquiatria cultural do Departamento de Psiquiatria Social e Transcultural da Universidade McGill, apela a uma mudança fundamental na forma como entendemos a saúde mental.
O seu artigo, “Cultural Poetics of Illness and Healing” (Poética Cultural da Doença e da Cura), defende uma abordagem profundamente enraizada nas ciências humanas psicológicas que explora a complexa interação entre linguagem, metáfora e processo de cura.
Kirmayer escreve: “A nossa própria compreensão de nós próprios através de metáforas e construções narrativas desempenha um papel fundamental tanto na regulação interna como no envolvimento com os nossos ambientes sociais, que são em grande parte constituídos por interacções contínuas com os outros. A linguagem de que dispomos para articular e exprimir a nossa experiência altera a própria natureza dessa experiência. É o que acontece mesmo com as experiências aparentemente persistentes de dor e sofrimento, tal como acontece com as histórias que emprestamos ou inventamos para levar a nossa vida por diante e nos projectarmos em circunstâncias novas e melhores.“
“A consequência é que uma imagem adequada da emergência da experiência da doença e da sua transformação através de práticas de recuperação tem de desvendar processos encarnados de imaginação, bem como processos sociais de auto-construção e posicionamento através de compromissos pragmáticos, materiais e discursivos com as possibilidades culturais que constituem os nossos mundos e nichos locais. Embora grande parte deste processo de criação de sentido seja organizado e comunicado através de narrativas, as metáforas desempenham um papel central nos esforços para dar sentido aos sintomas e ao sofrimento, tanto para os doentes como para os terapeutas“.
No centro da investigação de Kirmayer está a ideia de que a nossa compreensão e experiência de saúde mental é largamente determinada pela ciência cognitiva da linguagem e da metáfora, combinada com influências culturais. Esta abordagem realça o papel crucial da metáfora tanto na expressão como na compreensão das problemáticas da saúde mental. Aprofundando o conceito de “poiesis” – o ato de criação através da linguagem – Kirmayer ilustra a forma como a nossa visão do mundo e os nossos métodos de lidar com o sofrimento são intrinsecamente elaborados através deste processo.
O trabalho de Kirmayer revela a forma como as narrativas individuais e colectivas, profundamente enraizadas na história cultural e na comunidade, influenciam de forma crucial as nossas experiências, expressões e formas de lidar com o sofrimento psíquico e emocional. Defende que as metáforas, profundamente enraizadas nos antecedentes culturais e pessoais, moldam a forma como percepcionamos e articulamos os problemas de saúde mental. Estas metáforas funcionam como ferramentas cognitivas, trazendo novas perspectivas sobre situações familiares e influenciando as nossas ideias e acções.

Por exemplo, as metáforas podem transformar a forma como encaramos certas experiências ou emoções, dando-lhes novas conotações e implicações. Podem servir como ferramentas cognitivas, trazendo novas perspectivas sobre situações familiares e moldando assim a nossa compreensão e as nossas acções. Kirmayer acredita que este processo de pensamento metafórico é crucial em psiquiatria e psicologia, uma vez que afecta tanto a compreensão da doença e da recuperação por parte do paciente como do terapeuta.
Ao explorar a “poética cultural” da doença, Kirmayer sublinha a importância da expressão metafórica, demonstrando a interligação dos processos físicos e discursivos nas nossas experiências de saúde. Baseando-se na Cognição 4E, Kirmayer mostra uma relação recíproca entre os nossos estados corporais, o processo cognitivo e o discurso social em que estamos envolvidos.
Kirmayer argumenta que a inferência ativa desempenha um papel crucial nos nossos processos linguísticos, ajudando-nos a prever cenários futuros e a imaginar situações possíveis, o que, por sua vez, nos ajuda a navegar no mundo social. No entanto, salienta que os modelos computacionais de metáfora na inferência ativa não captam totalmente a riqueza de significados derivados de histórias e contextos culturais.
Kirmayer trata também da mudança, no DSM-5, da noção de síndromes ligadas a conceitos culturais de sofrimento, salientando a complexidade da experiência sintomática. Explora a forma como as explicações culturais da doença se baseiam frequentemente em metáforas e não em modelos inteiramente pormenorizados. Esta abordagem traz à luz do dia a importância das metáforas na experiência corporal, na produção de sintomas e nos mecanismos de sobrevivência.
Além disso, Kirmayer analisa o poder transformador das metáforas na psicoterapia, ilustrando a forma como os terapeutas as utilizam para reformular a compreensão e as respostas dos pacientes aos problemas emocionais e comportamentais. Faz uma análise do impacto do colonialismo na linguagem e nas metáforas e salienta a importância de terapias culturalmente informadas, como a Terapia Cultural Psicohistoriográfica na Jamaica.
O seu artigo também destaca o papel fundamental da metáfora na formação e na prática médica. O autor defende uma compreensão mais profunda das metáforas utilizadas na medicina para reforçar a relação entre as experiências dos médicos e dos utentes. Este conceito estende-se à poética social na educação médica, centrando-se na compreensão das histórias e dos mundos de vida dos doentes para além dos diagnósticos clínicos.
O trabalho de Kirmayer oferece uma visão da complexa relação entre linguagem, cultura e saúde mental, salientando a necessidade de uma compreensão mais matizada dos cuidados de saúde mental que transcenda as abordagens biomédicas tradicionais.
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Kirmayer, L. J. (2023). Poética cultural da doença e da cura. Transcultural Psychiatry, 60(5), 753-769. https://doi.org/10.1177/13634615231205544