Traduzido de Mad in America por Mattia Faustini
Eu: Acho que há muitos traumas que ele tem de processar
Dr. K: Aconteceu alguma coisa?
– “História Médica #2”, The Bearable Slant of Light
Nos papéis de entrada da primeira hospitalização do meu filho, o psiquiatra responsável escreveu: “Ao exame, o paciente apresenta-se como um péssimo historiador”. Por outras palavras, ele não conseguia contar uma história coerente e precisa daquilo que tinha acontecido e que o tinha levado a fugir do gabinete do terapeuta naquela tarde de julho para ser transportado ao hospital para avaliação psiquiátrica.
Ainda hoje, dez anos depois, não está claro que ele ainda é capaz de contar uma história que reflicta a verdade do que a sua vida é, ou será.
Eu também tentei responder à pergunta “Aconteceu alguma coisa?” com uma história que explicasse as dificuldades de saúde mental do meu filho mais vezes, e de mais formas, de que consigo relembrar. Mas sendo eu professora num programa de pós-graduação em escrita criativa, os meus relatos nunca se parecem com algo que eu reconheça como uma história. Não há um incidente incitante, nem um protagonista, nem um conflito identificável, e muito menos uma resolução.
Há personagens, claro: a jovem assistente social de olhos arregalados que quer mesmo ajudar; a enfermeira cansada mas sábia que já viu de tudo; o residente ansioso que tem uma nova ideia sobre novos medicamentos; o médico atarefado com 15 minutos para avaliar o caso e depois resolver tudo com um comprimido ou cinco.
E há muitos cenários: o consultório suburbano do primeiro terapeuta, onde nos sentámos nervosamente à espera dos resultados da avaliação, sem qualquer som a não ser o gorgolejar de uma fonte de água decorativa cujo objetivo era cheirar à mindfulness; a área de espera dos Serviços de Emergência Psiquiátrica, a tremer de medo pela vida dele depois de um episódio de automutilação; o meu quarto, a meio da noite, quando fui acordada pelo telefone e pelas interrogações de uma assistente social sobre o seu estado mental; o parque de estacionamento do seu apartamento, a explicar à equipa de emergência que ele começou a tremer de repente e que deixou de reagir; a noite após demasiados copos de vinho, com amigos queridos que se sentam no nosso convés das traseiras e ouvem pacientemente a “história” da última hospitalização falhada.
A única forma de a contar, para mim, é a poesia. A minha conversa com o Dr. K, acima referida, abre o primeiro poema da minha nova coleção, The Bearable Slant of Light (“A inclinação suportável da luz”), que documenta as lutas do meu filho e o seu diagnóstico de doença bipolar, bem como os contornos da nossa cultura ansiosa. Como o poema expõe desde o início:
Escrevi isto porque precisava de o fazer. Porque a história que ajuda a ele e também a nós, aqueles que o amam e se preocupam com ele, a dar sentido aos últimos 10 anos da sua jovem vida – a história que seria a história fundamental da identidade e da aceitação – não resultou coerente. Aconteceu alguma coisa? perguntamo-nos constantemente. E se compreendêssemos o que aconteceu, talvez pudéssemos responder à pergunta mais importante: O que é que vai acontecer a seguir?
Como escritora, sinto-me compelida a fazer com que tudo faça sentido, a construir uma narrativa em que ele alcança o que se propôs alcançar com esta vida, embora isso não seja mais claro para ele agora do que quando tinha 20 anos e estava a começar a viagem para a idade adulta. Foi nessa altura que o surto psicótico o atingiu pela primeira vez. E aqui, até as implicações narrativas da palavra “viagem” sugerem que, embora possa haver obstáculos, haverá um fim – seja para o bem ou para o mal.
Mas os mecanismos de narração nunca parecem ser mais do que a soma das suas partes divergentes: as metáforas da doença, da luta e da firme sobrevivência (ele venceu as expectativas! ele batalhou!) ou da aceitação elegante; as reviravoltas previsíveis da remissão e do surto; os claros sucessos e fracassos de qualquer tratamento; os médicos que não se encaixam facilmente nas categorias de heróis e vilões, cada um com a sua própria história de motivos e intenções…
Por isso, é difícil, se não impossível, impor à história do meu filho qualquer tipo de “sentido” literário. Como escritora e mãe, este tem sido o meu desafio.
A linguagem da poesia pode contar uma história diferente
Sem dúvida, houve possíveis candidatos a temas narrativos – formas de contar uma história sobre “o que aconteceu”.
Há, por exemplo, a história da medicação. Começou com um antidepressivo e foi-lhe contado algo assim: Não vai notar nada durante um mês, mais ou menos, e depois irá aperceber-se de que se sente simplesmente melhor. Em vez disso, vinte minutos depois de tomar a pílula, uma história diferente emergiu num ataque de riso, choro, contorções, passos e insónias durante 72 horas. Embora esta reação maníaca ao Luvox devesse ter sido um alerta, ele estabilizou com uma dose mais baixa e persistiu por um tempo até finalmente abandoná-la. Funcionou? Ficou melhor? Pior? Mudou? Foi um progresso ou um declínio? Certamente, tinha acontecido algo que valia a pena contar.
O que aconteceu de seguida, obviamente: hospitalizações e mais medicamentos. O primeiro medicamento foi um antidepressivo, mas foi longe de ser o último; um protocolo de polifarmácia que incluía medicamentos para aliviar os efeitos adversos de outros medicamentos significava que nunca se sabia ao certo quais estavam a proporcionar que tipo de alívio, se é que havia algum. Precisava de dar forma à história desses medicamentos (tantos, tantos medicamentos) como algo completamente diferente, algo que fosse mais do que apenas informação sobre receptores neurológicos e efeitos adversos físicos. Mark Freeman, na sua discussão sobre as humanidades psicológicas, refere como é “… importante encontrar uma linguagem para poder falar de experiências que não são facilmente articuláveis, explicáveis, etc. E isso também significa passar para um registo de linguagem diferente…”
Aqui, a linguagem da poesia pode contar uma história diferente de medicamentos. Por exemplo:
Celexa1
Nem pensar, ele não tomaria
de novo. Ele sabia
que não estava certo, sentia-o a zumbir
nas suas veias como uma mosca
presa. Não tomaria um comprimido
que soava como o nome
de um maldito Sedan de luxo,
suave sobre sinuosas
estradas de montanha, silenciosas
num inferno de cores de outono,
flamejando num estado distante.
E:
Depakote2
Podia muito bem ser
chamado dead-a-kote –
uma bala idiota de
droga doseada
por 500 mg
de lesma. Criminosa,
nocaute à moda antiga.
Depois, há as histórias das avaliações, dos inventários, dos exames e dos testes que visam medir. Mas o meu filho era essencialmente imensurável. Freeman, novamente na sua entrevista, refere-se ao “arsenal de instrumentos” que a psicologia oferece na sua tentativa de diagnosticar, concluindo: “Uma das falhas da psicologia académica é que, através do seu vasto arsenal de métodos e técnicas, escalas e medidas, obscureceu o nosso próprio encontro com elementos da realidade humana que precedem todo esse arsenal de instrumentos.”
Uma outra forma de o dizer, como escrevi num poema sobre este carrossel de inventários e instrumentos psicológicos, em “The Results of the Assessments I”, é: “O que observamos é o que queremos ver”.
Também procurei na literatura e na história representações e histórias de sofrimento mental. Nas mais verdadeiras destas histórias de ficção, raramente há bons finais: A psicose de Quentin Compson que se transforma em suicídio em The Sound and the Fury (O Som e a Fúria); Holden Caufield que conta a história do seu esgotamento num centro psiquiátrico residencial para onde foi enviado com o objetivo de se recuperar; e a filha mais nova do Rei Lear, Cordélia, que permanece em silêncio até à sua morte. Embora os diagnósticos de sofá de personagens fictícias (sendo o mais famoso a análise de Freud sobre Hamlet) possam distrair-nos da beleza dos contos em questão, estas personagens foram uma maneira de refratar a luz da nossa experiência através de uma lente diferente, e talvez vê-la de forma mais autêntica. O meu filho não é o Holden, nem o Quentin, nem a Cordélia, mas há algum fulgor no que estes escritores captaram que convida a um pensamento mais expansivo, a uma linguagem inefável sobre o que aconteceu e ao peso emocional da perda, da raiva e do desespero que estas experiências acarretam.
As histórias acerca de quem somos, como chegámos aqui e o que nos moldou estão, talvez mais do que nunca, na primeira linha da nossa paisagem cultural. A procura de perfis de ADN pessoais que nos contem as histórias da nossa etnia e da nossa migração, e o drama das celebridades de Finding Your Roots, sugerem como as nossas “histórias” são fundamentais para compreendermos quem somos.
Mas durante dez anos, o meu filho e todos aqueles que o amam e cuidam dele não tiveram uma história coerente para contar. Tenho tentado contar uma espécie de história na minha poesia porque é tudo o que posso fazer para me salvar. Se for caótica, não resolvida, mas com lampejos de beleza – tal como a vida quotidiana – então terei conseguido. As histórias falsas e parciais sobre as drogas e o “arsenal de instrumentos”, juntamente com as centenas de páginas de documentos de admissão e alta, não nos dizem – nem a ele – o que precisamos de saber.
Ele deve criar a sua própria história, com o seu próprio mosaico expansivo e narrativo de caos e beleza. Ele tem de se tornar o seu próprio historiador.
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Mad in Portugal acolhe blogues de diversos autores. Estas publicações foram concebidas para servirem de fórum público de debate – em termos gerais – sobre a psiquiatria e os seus tratamentos. As opiniões expressas são as dos próprios autores.