Este artigo, publicado no The Guardian (Reino Unido), é um relato na primeira pessoa de uma mulher que, depois de 5 anos com pensamentos intrusivos devastadores e a vergonha que veio com eles, finalmente, aos 20, encontrou as suas experiências enquadradas como sintomas do Transtorno Obsessivo-Compulsivo. Autointitular-se o rosto das campanhas sobre o TOC está longe de ser um exagero: Rose Cartwright escreveu um livro sobre a sua experiência, adaptou-o para televisão, participou em conferências e em programas televisivos, patrocinou associações e campanhas. No entanto, na altura em que a série estava a ser gravada, a autora estava já em tumulto.
Sentada na escadaria daquela biblioteca em 2018, a ver o programa de televisão a ser feito, deveria ter sido um momento de memórias afetuosas sobre o diagnóstico fundamental que levou à minha recuperação. Uma oportunidade para celebrar o momento de viragem em que vi pela primeira vez a minha realidade interior secreta reflectida em mim. Charly chorou em frente à câmara e eu chorei atrás enquanto fazíamos mais um take. Enquanto a nossa história de esperança chegava aos ecrãs de milhões de pessoas, em privado, eu estava a ficar cada vez mais desesperada. Eu sabia o que mais ninguém sabia, que o alívio de ter sido diagnosticada tinha sido brutalmente curto. Não só os terríveis pensamentos intrusivos tinham regressado, como eu tinha começado a questionar quase tudo o que pensava saber sobre saúde mental.
O ponto de viragem surgiu, para Rose, enquanto estrevistava a neurocientista Claire Gillan para um podcast.
“O TOC não é uma realidade biológica”, disse Gillan, com toda a naturalidade. “É o que os dados mostram cada vez mais.”
Um nó surgiu-me na garganta. Fiquei a tentar encontrar uma resposta. Mas não tinham investigadores provado que os cérebros com TOC são biologicamente diferentes? (Alguns estudos de neuroimagem mostram um aumento da atividade em vários córtices.) “As anomalias nestas regiões não são de forma alguma exclusivas do TOC”, disse Gillan. “Muitas perturbações mostram o mesmo tipo de alterações cerebrais.”
Eu não sabia disso. Pensava que o meu cérebro partilhava as mesmas anomalias que todas as outras pessoas com TOC e que estas eram as causas das nossas obsessões; que tínhamos cérebros que eram mensuravelmente diferentes dos cérebros de pessoas com, digamos, TDAH ou anorexia. Pensei que esta era a definição de diagnóstico “oficial”. Gillan explicou que, pelo contrário, os diagnósticos psiquiátricos não se baseiam em biomarcadores, são construções subjectivas.
Rose deu por si dividida entre a vontade de ignorar o que tinha ouvido e a compulsão a saber mais. Eventualmente, encontrou inclusive as críticas que o próprio Allen Francis, o psiquiatra que liderou a equipa que desenvolveu e reviu o DSM-IV, faz à medicalização do comportamento humano, e cita-o: “Estes conceitos são praticamente impossíveis de definir com precisão, com linhas claras nos limites.”
À medida que fui investigando, deparei-me com ideias que me abalaram a mim e à minha mensagem profundamente: décadas de críticas, não apenas ao diagnóstico, mas a todo o modelo médico. As provas de que a exposição ao stress ambiental é o principal fator determinante de problemas de saúde mental comuns, como a ansiedade, a depressão e o TOC, pareciam ser esmagadoras, ao passo que as provas de que a disfunção orgânica do cérebro ou a genética são as principais causas dessas condições pareciam ser comparativamente escassas. Pousei o meu computador portátil, deitei-me no sofá e chorei. Isto pareceu-me um ataque à minha identidade, como se me estivessem a dizer que o meu sofrimento não era grave. Se os meus pensamentos não eram doença, isso significava que eram “eu”? Será que eu queria esta merda na minha cabeça? Será que escolhi isto?
Mais tarde, viria a compreender que questionar o modelo médico não é questionar a existência de problemas de saúde mental: eles são reais e devastadores. Aprendi que, sim, há alterações cerebrais que se correlacionam com uma saúde mental deficiente, alterações essas que enraízam e agravam o sofrimento. Mas que a neurociência está longe de ser capaz de compreender estas correlações, muito menos de as classificar em condições distintas, ou de explicar porque é que os cérebros começam a ficar transtornados em primeiro lugar. A saúde mental é muito mais complexa e misteriosa do que qualquer médico alguma vez admitiu.
A autora começou, então, uma jornada de auto-conhecimento e de exploração de outras formas de interpretar e cuidar do seu sofrimento, uma “missão para desenhar um novo mapa, entrevistando especialistas em neurociência, psicodélicos, Budismo e trauma.”
A conclusão óbvia de que o meu ego me tinha estado a proteger era que a minha saúde mental não estava separada da da minha família; a depressão da minha mãe não estava separada das nossas dificuldades financeiras, que não estavam separadas de décadas de privatizações industriais que devastaram o centro de Inglaterra. E nada disto está separado da minha neurobiologia inescrutavelmente complexa, que é, ela própria, uma história em co-evolução com tudo o que me rodeia.
É isto que eu acho que está errado no modelo médico: a incapacidade de compreender a saúde mental no seu contexto. Uma suposição de que uma perturbação é uma “coisa” que um indivíduo tem, que pode ser medida, independentemente da experiência subjectiva. O modelo do trauma pode ser igualmente redutor, transformando a cura num percurso individual do consumidor e ignorando as condições ambientais em que as feridas se formam. Isto deu aos profissionais o poder de descontextualizar a angústia das vidas daqueles que a experimentam; de criar taxonomias pseudo-específicas de perturbações mentais. Há décadas que os manuais de diagnóstico dão a psiquiatras e psicólogos bem-intencionados a ilusão de explicar o sofrimento do doente sentado à sua frente. Este sistema não tem prejudicado ninguém mais do que aqueles que enfrentam adversidades sociais: privação financeira, educação deficiente, discriminação racial, etc., que são patologizados como se o seu stress reativo, e não as coisas a que estão a reagir, fosse o problema.
Os internamentos hospitalares da minha mãe eram cíclicos, ocorrendo anualmente durante vários anos. Uma vez, quando a visitei no final de dezembro, tive dificuldade em conter as minhas emoções ao ver os postais de Natal agridoces que os doentes tinham feito e colado na parede. Havia uma frase que eu ouvia a minha mãe dizer aos médicos durante essas visitas: “Não consigo lidar”. Esta frase era vista como sintomática da doença que diziam que ela tinha: doença bipolar. Nunca foi tomada à letra, como uma afirmação racional de uma pessoa que via claramente as suas dificuldades.