O capitalismo global é um determinante social da saúde

Um novo artigo na Social Science & Medicine defende que o capitalismo global pode ser o maior determinante social da saúde a nível mundial.

Traduzido por Tiago Pires Marques de Mad in America (texto original)

Um artigo recente publicado na revista Social Science & Medicine explora um novo quadro conceptual para compreender o impacto do capitalismo global na desigualdade na saúde.

O cientista político Matthew B. Flynn argumenta que prestar atenção a forças como corporações transnacionais, financeirização, consumismo, conflitos de classe transnacionais e o estado transnacional pode ajudar pesquisadores e ativistas a entender melhor como intervir e produzir melhores resultados de saúde para a maioria das pessoas em todo o mundo.

O capitalismo global é um desses determinantes sociais proeminentes que influenciam a distribuição injusta da saúde em todo o mundo. Como sugerido por vários sociólogos, o capitalismo global representa uma mudança qualitativa nas operações de um sistema económico mundial que agora transcende o território“, escreve Flynn.

Consequentemente, as relações sociais do capitalismo, incluindo as relações de classe exploradoras, as instituições políticas necessárias para as operações do capital e as práticas culturais e ideológicas que impulsionam o sistema de acumulação, constituem um sistema global complexo. Partindo desta perspetiva, vários estudiosos críticos da saúde global avaliaram o impacto da globalização neoliberal nas causas fundamentais da injustiça na saúde“.

 Há muito que o capitalismo é apontado como um sistema económico e social que produz desigualdades, desde Karl Marx até aos mais recentes estudiosos das ciências sociais. Tradicionalmente, a teoria marxista preocupava-se com a relação entre os trabalhadores e os meios de produção. Vários académicos marxistas e pós-marxistas continuaram a desenvolver o seu pensamento na sua relevância para a saúde mental e as disciplinas psi. Parte deste pensamento é um desenvolvimento da – ou existe em paralelo com – a anti-psiquiatria.

Vários académicos também relacionaram o capitalismo com o paradigma contemporâneo dos “determinantes sociais da saúde“, centrando-se na desigualdade na saúde.

O presente artigo contribui para um quadro concetual que permite compreender o conjunto “macro-sociológico” de instituições que constituem o capitalismo global. O autor Matthew B. Flynn observa que se pode fazer uma distinção entre fatores sociais concretos como “desigualdade social, ambiente, educação, sistema de bem-estar e cultura” e fatores sistémicos ou societais mais amplos, tais como “militarismo, imperialismo, colonialismo e patriarcado”, bem como o capitalismo.

Defende que é necessário mais trabalho para clarificar os mecanismos exatos que medeiam estas estruturas “distantes” e os seus efeitos nos indivíduos e comunidades “locais” em termos de saúde. Especificamente, Flynn pretende compreender o capitalismo global a partir do quadro dos determinantes sociais da saúde.

Flynn define vários termos importantes para uma compreensão marxista do capitalismo.

O primeiro é a mercantilização, ou a forma como os estados-nação fornecem “codificação legal” para transformar coisas como recursos naturais, força de trabalho, conhecimento e outros em mercadorias que podem ser trocadas por lucro.

O segundo é a proletarização, que se refere à “separação dos trabalhadores dos meios de produção e a sua subjugação à necessidade do capitalismo de extrair mais-valia dos trabalhadores através da exploração”, que é o terceiro termo.

O quarto conceito é o de acumulação infinita, ou seja, um “reinvestimento da mais-valia” nos mercados, permitindo uma progressão económica, social e laboral contínua.

O último conceito é o de contradições sociais, que aponta para o facto de o capitalismo estar sempre repleto de problemas como “lutas de classes, crises económicas, disputas políticas e desastres ecológicos”.

Desde o advento do capitalismo industrial na Europa Ocidental, há centenas de anos, tem havido uma totalização gradual destas forças, de tal forma que, na atualidade:

Todos os países, em graus variáveis, enfrentam pressões económicas e políticas para liberalizar os fluxos de capital e de comércio, mercantilizar os recursos naturais e os bens públicos, proporcionar as condições de uma força de trabalho explorável para a obtenção de lucros e limitar as restrições ao marketing e à publicidade.”

É claro que, como Flynn observa, o capitalismo não é apenas um processo nacional interno, mas ultrapassa as fronteiras territoriais, como nas relações comerciais internacionais.

A desigualdade na saúde pode ser entendida como agravada por estes processos capitalistas globais, salvaguardados por uma “classe capitalista transnacional”. Para compreender melhor estas dinâmicas, Flynn propõe uma teoria do capitalismo global baseada nas seguintes entidades:

– Corporações transnacionais

– Financeirização

– Consumismo

– Classes sociais transnacionais

– O Estado transnacional

Tem-se observado que as empresas transnacionais reduzem a qualidade de vida onde quer que operem. Estes efeitos vão desde a “instabilidade económica, a pobreza e a deslocação da população” até à insegurança alimentar, ao aumento da mortalidade (por exemplo, devido à contaminação da água), à subida dos preços dos produtos farmacêuticos, ao trabalho em fábricas de exploração, às crises ecológicas, entre outros.

Como alternativa potencial, Flynn menciona acordos económicos como “a economia solidária baseada na cogestão, na tomada de decisões democráticas para além do lucro e dos controlos estatais”, que poderia proteger os direitos e a saúde dos trabalhadores.

A financeirização, ou o aumento do sector financeiro de uma sociedade, pode proporcionar benefícios sociais em massa. No entanto, como Flynn observa, na prática, tem tido frequentemente o efeito oposto para muitos. A financeirização contribui para o desemprego, a pobreza, a violência e as deslocações, quando as terras e as casas das pessoas lhes são retiradas.

Os colapsos financeiros de maior escala também têm uma cascata de efeitos adversos na saúde. A Grande Recessão de 2007-2009 levou a que 37 milhões de pessoas fossem “atiradas para a pobreza, o aumento dos preços dos alimentos provocou mortes infantis, a redução das despesas de saúde pública, a queda das remessas e da ajuda externa e, pelo menos, 69 milhões de desempregados”. A especulação com os fundos de cobertura de risco [hedge funds] levou a “motins alimentares e à insegurança alimentar em todo o mundo”.

Relevante para a psiquiatria, a financeirização afetou certamente de forma negativa o mundo farmacêutico:

Com a pressão dos acionistas e dos gestores de investimentos, os executivos farmacêuticos concentraram-se no lançamento de “nichos de mercado” (isto é, medicamentos de pequeno mercado e de preço elevado, como os tratamentos do cancro), transformaram os cientistas em comerciantes e perverteram cada vez mais os dados da investigação para fins de marketing.

Para contrariar estas forças negativas, Flynn defende que devemos começar “a resistir à liberalização financeira, a promover o repatriamento de lucros, a desmantelar os bancos demasiado grandes para falir, a tributar as transações financeiras transfronteiriças, a oferecer o perdão da dívida e a desenvolver acordos financeiros alternativos”.

O consumismo também contribui para vários domínios da desigualdade na saúde. O consumo sem fim como valor social e económico leva à publicidade e à venda de alimentos pouco saudáveis (o que conduz a problemas de saúde como a obesidade), a uma transformação dos cuidados médico-paciente e a uma “cultura materialista que conduz à assunção de riscos pouco saudáveis”.

As relações médico-doente foram corporativizadas, de tal forma que os doentes são agora vistos mais como consumidores. Infelizmente, esta mudança não conduziu a melhores resultados, com práticas ineficazes como “pagamento por desempenho, métricas de satisfação dos doentes e avaliações online dos consumidores”.

A assunção de riscos não saudáveis refere-se, por exemplo, a práticas sociais em que os indivíduos procuram participar no consumismo para além dos seus meios económicos, mesmo que isso implique sérios riscos para a saúde:

Por exemplo, Mojola demonstra por que razão as mulheres jovens do sudoeste do Quénia têm níveis consistentemente mais elevados de infeções por VIH do que os homens da mesma idade, apesar dos numerosos programas de prevenção e do conhecimento generalizado da doença.

A sua etnografia aprofundada concluiu que o desejo das jovens por produtos de consumo, mas sem os meios económicos para os adquirir, resultava em relações íntimas com homens mais velhos que têm rendimentos mais elevados, mas também taxas de prevalência do VIH mais elevadas.”

Quanto às classes sociais transnacionais, Flynn observa que “a classe capitalista depende de processos insalubres de extração de riqueza dos trabalhadores”. Como exemplo concreto das diferenças de estatuto social e de poder económico entre a classe capitalista transnacional e a classe trabalhadora transnacional, que conduzem a resultados de saúde drasticamente diferentes, Flynn explica:

É provável que se encontrem taxas de morbilidade e mortalidade diferentes entre os mineiros de cobalto no Congo, os trabalhadores das fábricas da Foxconn na China que transformam e instalam esta matéria-prima como baterias em telemóveis, os engenheiros de Silicon Valley que concebem o dispositivo, os executivos de topo da Apple que gerem a operação e os acionistas estrangeiros e nacionais do Grupo Vanguard – o maior investidor institucional da empresa.

Como potenciais soluções, Flynn menciona o aumento do bem-estar universalista e das despesas de saúde pública e a expansão das iniciativas de educação materna nos países em desenvolvimento. Mudanças como estas têm demonstrado reduzir a desigualdade nos resultados de saúde entre as classes capitalistas transnacionais e as classes trabalhadoras.

O último conceito do quadro de Flynn, o Estado transnacional, aponta para o facto de a classe capitalista utilizar o poder através de canais secundários e de instituições transnacionais para concretizar os seus objetivos políticos, ultrapassando a resistência.

Um pequeno grupo de executivos no seio da Organização Mundial do Comércio, por exemplo, colaborou na criação de políticas internacionais de comércio de medicamentos que acabam por “limitar o acesso a medicamentos essenciais e ameaçar as despesas de saúde pública”, bem como reduzir a concorrência que faria baixar os preços dos medicamentos.

As instituições financeiras internacionais também contribuem para este tipo de efeitos globais, como a “imposição de medidas de austeridade, liberalização, desregulamentação e privatização que afetam direta e indiretamente a saúde”.

Apesar de uma investigação sólida nos dizer que as políticas de austeridade e a privatização conduzem a piores resultados de saúde nos países em desenvolvimento, a classe capitalista transnacional continua a insistir na redução dos cuidados de saúde públicos e de outros programas sociais benéficos – dando prioridade aos lucros de uns poucos selecionados em detrimento da vida humana.

Flynn observa que várias iniciativas ativistas têm feito mossa nestes esforços, desde o People’s Health Movement, que luta pela Saúde para Todos no Sul Global, ao ACT-UP na África do Sul e à ABIA no Brasil. Estes últimos movimentos ativistas de base procuram pressionar os governos para limitar os monopólios de patentes impostos pelas empresas farmacêuticas, por exemplo.

Flynn conclui:

As questões de saúde prementes de hoje demonstram a necessidade de aplicar o quadro capitalista global. A pandemia de COVID-19 expôs ainda mais a crise do capitalismo racializado em todo o mundo através do aumento da pobreza e do desemprego, das desigualdades sociais, das lutas por vacinas e medicamentos que salvam vidas e dos surtos de doenças infecciosas liderados pelo agronegócio global. 

Compreender o papel da busca incessante de lucros, das relações de classe exploradoras e da mercantilização da natureza e dos bens públicos permitirá que estudiosos, profissionais e ativistas abordem melhor estas questões, de modo a alcançar melhorias duradouras e equitativas na saúde.

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Flynn, M. B. (2021). Global capitalism as a societal determinant of health: A conceptual framework. Social Science & Medicine, 268. (Link)

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