Os manuais de perturbações do humor perpetuam mitos psiquiátricos e apresentam barreiras ao pensamento sistémico

Um novo estudo que analisa os manuais da APA [Associação Americana de Psiquiatria] sobre perturbações do humor revela que as narrativas desatualizadas sobre a depressão continuam a dominar. 

Traduzido por Tiago Pires Marques de Mad in America (texto original)

Um novo estudo publicado na Frontiers in Psychiatry critica as construções dominantes das perturbações do humor em dois manuais de psicopatologia recomendados pela APA. 

Apesar do progresso da psiquiatria crítica que revelou os critérios de diagnóstico falhos no DSM [The Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders; publicado pela APA] e desmascarou velhos mitos como a teoria do desequilíbrio químico, os autores descobriram que essas narrativas prejudiciais e dominantes permanecem embutidas nos manuais.  

Escrevem: 

“A prevalência de explicações biomédicas intrapessoais (que se referem sobretudo à teoria do desequilíbrio químico e a fatores genéticos) implica que estas “lendas urbanas” são resistentes à mudança e, de facto, os manuais profissionais tendem a fornecer uma perspetiva desequilibrada dos processos etiopatogénicos, com muito pouca consideração pelos fatores psicossociais e pelos acontecimentos da vida”. 

Por conseguinte, os autores apelam a um reexame cuidadoso da forma como as perturbações do humor são construídas nestes textos influentes. 

O estudo foi realizado por Lisa C. Fellin, do Departamento de Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Bergamo, e por Ekaterina Zizevskaia e Laura Galbusera, do Departamento de Psiquiatria e Psicoterapia da Escola Médica de Brandenburgo.

Os esforços da psiquiatria crítica ao longo do último século têm-se esforçado por resistir ao modelo biomédico prevalecente que se centra nas causas fisiopatológicas das “perturbações mentais” promovidas pelas companhias de seguros e de medicamentos. 

Em alternativa, através de uma perspetiva construcionista e crítica, os autores entendem a psicopatologia não como um termo científico objetivo, mas sim como uma “construção cultural, política e social, em grande parte ou inteiramente determinada por diferentes ontologias e epistemologias, bem como por valores, preconceitos e lealdades sociais, culturais e profissionais“. 

Embora esta perspetiva esteja a ganhar força, e seja amplamente reconhecido que as “perturbações” não podem ser entendidas como estando desligadas do contexto social do indivíduo, os aspetos sociais continuam a ser negligenciados, e ainda não entraram na prática clínica dominante e nos textos a ela associados. 

Os autores sublinham o profundo impacto que estes textos têm, uma vez que refletem as construções dominantes da doença mental e são utilizados para formar profissionais de saúde mental para praticarem em conformidade, o que tem consequências graves.  

Assim, os autores propuseram-se investigar esta questão com novos métodos, abordar as implicações do reforço destas narrativas e oferecer uma abordagem alternativa à forma como encaramos a psicopatologia.  

Analisaram todas as explicações relacionadas com as “perturbações do humor” em dois manuais académicos de psicopatologia mainstream recomendados no site da APA. Os textos são manuais profissionais destinados a orientar estudantes, educadores e profissionais. Analisaram-nos relativamente à forma como os textos são produzidos e consumidos e ao contexto sociocultural mais alargado que os envolve. Centrando-se em categorias que poderiam esclarecer a forma como a “depressão” é definida e como uma pessoa diagnosticada com depressão deve ser tratada, os autores examinam as seguintes categorias na sua análise: Explicações sobre os sintomas, Explicações sobre a mudança terapêutica e Explicações sobre a etiologia. 

Utilizaram o sistema de codificação “1 a 3: da mónada à tríade” para interpretar as explicações das causas e do tratamento das perturbações do humor e distinguir entre explicações monádicas (centradas numa entidade), diádicas (centradas na relação entre duas entidades) e triádicas (envolvendo três entidades com interações entre elas). Além disso, os autores utilizaram o Processamento de Linguagem Natural (PLN) nos capítulos selecionados para obterem conhecimentos mais profundos e visualizarem os padrões de linguagem predominantes.  

Os autores constataram que as principais explicações para a etiologia e os sintomas eram as causas biomédicas (36%) e os atributos pessoais (33,5%). As causas externas foram utilizadas em apenas 18% dos casos, seguidas das explicações interpessoais com 12,5%. 

Nos dois capítulos, a prevalência de explicações monádicas, ou de entidade única, foi de 86%, sendo as explicações diádicas limitadas e as explicações triádicas ou sistémicas negligenciáveis.  

Em suma, os resultados do estudo são consistentes com estudos anteriores que mostram uma visão desequilibrada das causas e dos tratamentos das perturbações do humor, com explicações interpessoais e biomédicas dominantes em ambos os textos e um espaço limitado dedicado a fatores sociais, relacionais ou traumáticos.  

Os resultados do PLN revelaram uma sobre-representação da terapia cognitiva em comparação com outras abordagens terapêuticas e uma prevalência notável de padrões de linguagem relacionados com explicações biológicas de base individual e outras explicações intrapessoais.  

Estas visões desequilibradas da etiologia e dos fatores de tratamento têm consequências graves. O enfoque nas explicações biomédicas para as perturbações do humor conduz fortemente os indivíduos à medicação, a uma menor esperança de recuperação e a um aumento do estigma. É importante notar que também leva a que se ignorem fatores psicossociais, ambientais e estruturais mais amplos. Os autores concluem: 

“Podemos sublinhar o risco de que os grupos já vulneráveis ou oprimidos, cujo início da depressão pode estar relacionado com más condições sociais, falta de recursos, discriminação e desequilíbrios de poder, possam ser ainda mais medicalizados, destituídos de poder e marginalizados”. 

Apelam a um reexame cuidadoso das explicações contidas nestes textos e a uma reconceptualização dos objetivos da psicopatologia que diminuam o estigma e aumentem a autonomia e a agência na superação das perturbações do humor.  

Sugerem um enquadramento alternativo que tente dar sentido à angústia humana e à experiência vivida através de conversas contínuas co-construídas com as pessoas afetadas e uma compreensão da depressão como tendo a função de “sinalizar necessidades não satisfeitas” ou “transmitir uma mensagem para prestar atenção a algumas áreas da vida”. 

Os resultados deste estudo reforçam a urgência de reexaminar a forma como as narrativas dominantes são construídas nos manuais e livros de psiquiatria, bem como sublinham a necessidade permanente de reconceptualizar o sofrimento mental de uma forma que tenha em conta a complexidade do que significa ser um ser humano num determinado contexto social.  

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Fellin LC, Zizevskaia E e Galbusera L (2024). A construção convencional dos transtornos do humor é resistente ao pensamento sistémico? Front. Psychiatry 14:1270027.doi:10.3389/fpsyt.2023.1270027 (Link)

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