A terapia dos sistemas familiares internos é um método não patologizante de trabalhar para a cura do trauma. O percurso de cura é, portanto, um regresso à completude através da reconexão com nós mesmos.
Tradução de Tiago Pires Marques
Como os leitores regulares do Mad in America bem sabem, o nível de sucesso no campo da psiquiatria no que respeita o tratamento (ou até mesmo a compreensão) no campo da saúde mental é medíocre, para dizer o mínimo. Desde que abraçou um modelo biomédico de saúde mental, há mais de 40 anos, a mentalidade “É tudo uma questão de medicamentos” redefiniu a forma como pensamos a patologia mental e o tratamento. Consultar um psiquiatra, atualmente, tornou-se essencialmente sinónimo de prescrição de remédios, cujo significado talvez só seja eclipsado pela ineficácia dessas drogas – como demonstrado repetidamente por pesquisas independentes – juntamente com a litania de efeitos adversos que as acompanham.
Talvez não haja maior indicador dos fracassos da psiquiatria do que a crescente crise em termos de saúde mental entre os jovens e os jovens adultos. Nas últimas semanas, foi publicado um relatório do CDC [Centers for Desease Control and Prevention, ndr] sobre traumas e saúde mental dos jovens. Entre as suas conclusões preocupantes estão que “quase todos os indicadores de saúde mental precária e pensamentos e comportamentos suicidas aumentaram de 2011 a 2021”, e “a percentagem de estudantes de todos os grupos raciais e étnicos que se sentiam persistentemente tristes ou sem esperança aumentou”. Depois de várias décadas em que a psiquiatria abraçou uma mentalidade biomédica, tornou-se clara a necessidade de uma mudança profunda.
A meu ver, os defeitos da psiquiatria dividem-se grosso modo em três categorias:
- Uma hiperfocalização no somático. A obsessão com a biologia, os neurotransmissores e as hormonas domina este campo. O problema fundamental com isto é que mesmo que certas perturbações mentais estejam claramente associadas a alterações biológicas (algo que pode ser menos comum do que muitas pessoas pensam), isto não nos diz nada sobre a causalidade. Foram as alterações biológicas que causaram a perturbação ou foi a perturbação que causou as alterações biológicas? E mesmo que, hipoteticamente, estabeleçamos que um determinado conjunto de anomalias biológicas resulta em dificuldades mentais/emocionais/comportamentais, este conhecimento não faz nada por si só para resolver o porquê; ou seja, o que é que causou as alterações biológicas em primeiro lugar?
- Geneticismo irracional. Quando pressionada para encontrar uma causa para as perturbações mentais, a psiquiatria invariavelmente recorre a um velho aliado: a genética. Apesar da falta de provas para este ponto de vista, como demonstrado estudo após estudo, o mito persiste. Isto pode dever-se, fundamentalmente, ao facto de os genes serem a única forma possível de explicar a etiologia das perturbações mentais se se acreditar que a biologia e os desequilíbrios bioquímicos explicam tudo. Desta forma, desenvolveu-se uma relação de reforço mútuo entre estas duas ideologias (geneticismo e biomedicalismo), cujo resultado tem sido desastroso para o tratamento da saúde mental na nossa sociedade.
- Diagnósticos e tratamentos baseados em sintomas. Aquilo a que a psiquiatria chama diagnósticos não é mais do que constelações de sintomas. Cada entrada no DSM é o nome de uma “perturbação”, à qual é associado um conjunto de sintomas. Como estes sintomas são mentais/emocionais e não físicos, são necessariamente abstratos e subjetivos. Pior ainda, os sintomas são efeitos e não causas. Como tal, um diagnóstico não explica nada – é meramente um nome dado a um conjunto de sintomas, nada dizendo sobre a causalidade.
Como resultado, as abordagens de tratamento da psiquiatria (i.e., medicamentos) focam-se necessariamente nos sintomas e não nas causas. Quando não se sabe o que causa algo, o melhor que se pode fazer é tentar gerir os sintomas. Infelizmente, esta abordagem não é de todo exclusiva da psiquiatria – a medicina ocidental como um todo, juntamente com muitas formas populares de psicoterapia, tentam simplesmente gerir os sintomas e dar o assunto por encerrado. As perturbações mentais e as doenças físicas crónicas são, portanto, fundamentalmente tratadas da mesma forma – e o resultado é o enfraquecimento da nossa saúde na sociedade.
O meu objetivo neste artigo é olhar para além do paradigma dominante e descrever como o trauma leva à disfunção mental, incluindo tanto condições “diagnosticáveis” como a depressão, como outros padrões mentais, emocionais e comportamentais que, embora talvez sejam mais subtis, são, no entanto, bastante problemáticos (por exemplo, mau carácter, sentimento de vergonha, insensibilidade emotiva). Irei além do trauma informado e adotarei uma abordagem centrada no trauma para compreender a causalidade destes padrões; por fim, realçarei o significado destas noções para um tratamento eficaz.
Começaremos com uma visão geral do que é o trauma, na minha perspetiva, usando uma lente muito mais ampla do que é habitual.
Panorâmica do trauma
A palavra “trauma” vem da palavra grega para “ferida”. Como salienta o autor e especialista em trauma, Gabor Maté, as duas palavras são perfeitamente análogas numa série de aspetos. As feridas criam uma área sensível que é dolorosa ao toque; o trauma torna-nos sensíveis a estímulos emocionais. As feridas são cobertas por tecido cicatricial que é inflexível, dormente e não cresce; os impactos do trauma numa pessoa podem ser descritos exatamente com as mesmas palavras. O trauma, portanto, pode ser mais bem entendido como uma ferida psicológica.
Com o trauma, no entanto, temos a oportunidade de curar ativamente em vez de esperar passivamente pela cicatrização do tecido. Mas primeiro, um olhar mais profundo sobre o trauma e os seus impactos.
Causa e efeito
É importante distinguir entre trauma e evento traumático; o último é a causa do primeiro. Muitas vezes pensamos no trauma como sendo o que aconteceu, mas na verdade são as consequências internas do que aconteceu – como o evento traumático nos afeta hoje e o que fazemos com que signifique sobre nós próprios. Como refere o autor e curador Thomas Hübl: “Muitas pessoas pensam que o trauma é o acontecimento terrível que nos aconteceu. Mas o trauma é a resposta que acontece no sistema nervoso do corpo”.
Explícito versus Encoberto
Os eventos traumáticos dividem-se frequentemente em duas categorias. A primeira é a mais óbvia: eventos específicos e evidentes, como o abuso físico/sexual ou um acidente de viação. Estes acontecimentos podem infligir um trauma imediato a um indivíduo que, se não for tratado, se manifestará de várias formas para o resto das suas vidas.
O segundo tipo de evento traumático é mais subtil (encoberto) e é frequentemente designado por trauma de desenvolvimento. Neste caso, o “evento” traumático é uma falta de sintonia prolongada entre uma criança e os seus pais, que resulta em sofrimento para a criança. Quando as necessidades fundamentais de desenvolvimento das crianças não são satisfeitas – como é frequentemente o caso nas sociedades modernas – o resultado é o trauma. O trauma do desenvolvimento é, portanto, mais frequentemente o que não aconteceu do que o que aconteceu.
Os traumas resultantes destes dois tipos de eventos são muitas vezes distinguidos como traumas de Grande-T e Pequeno-T. Embora eu compreenda a intenção por detrás desta linguagem, não é uma expressão que eu utilize. Não há nada de “pequeno” no trauma do Pequeno-T. Não só o trauma de desenvolvimento é mais comum, como a sua natureza insidiosa torna o seu impacto na vida de uma pessoa mais difícil de reconhecer. Muitos comportamentos patológicos, padrões de pensamento e tendências – tanto a nível individual como social – são o resultado de traumas de desenvolvimento generalizados, e são tão comuns atualmente que são considerados normais. O reconhecimento é um primeiro passo importante.
Note-se que isto não é de forma alguma uma intenção de minimizar o trauma evidente. A questão é simplesmente que ambos os tipos de trauma, na minha opinião, merecem igual atenção.
Os efeitos do trauma
Quer seja manifesto ou de desenvolvimento, o trauma é um espectro – e todos nós nos situamos algures neste espectro. A medida em que nos afeta no nosso dia-a-dia é muitas vezes uma descoberta chocante, mas a chave a ter em mente é que todos estes impactos são estratégias de sobrevivência que, quando se formaram originalmente, eram respostas muito inteligentes ao ambiente. Estas adaptações surgiram para nos proteger, normalmente como resultado de um trauma durante a infância, e no início foram bastante eficazes. No entanto, com o passar do tempo, tornam-se desadaptativas.
Abaixo resumimos algumas formas em que as adaptações ao trauma nos afetam:
Desconexão do Eu: O trauma desconecta-nos de quem somos, no sentido em que as estratégias e adaptações de enfrentamento não são fundamentalmente o “nós” real. Temos tendência para nos identificarmos com estes comportamentos, sem nos apercebermos de que o nosso verdadeiro “eu” está escondido por detrás deles. Alguém pode dizer, por exemplo, “sou uma pessoa muito ansiosa”. Mas o seu verdadeiro Eu não é ansioso – a ansiedade é uma resposta ao trauma.
Desconexão do momento presente: O trauma desconecta-nos do momento presente de várias formas. No dia-a-dia, tendemos a pensar que estamos a reagir ao presente, mas muitas vezes estamos a reagir ao passado. Quando somos provocados por alguém, podemos ter a certeza de que o que está a ser provocado é um trauma passado. Mas, ainda mais subtilmente, as adaptações e as estratégias de sobrevivência que usamos baseiam-se todas no passado – por isso, estamos essencialmente a viver no passado sempre que as usamos.
Virarmo-nos contra nós próprios: Tal como nos podemos identificar com as adaptações ao trauma de tal forma que elas parecem ser verdadeiramente “nós”, também nos podemos virar contra elas e fazer delas o inimigo. Isto pode assumir a forma de resistir a emoções/comportamentos que consideramos maus, criticarmo-nos a nós próprios ou culparmo-nos pelo nosso passado (ou pelos mecanismos de sobrevivência dele resultantes). Isto cria o que pode ser considerado uma doença psicológica autoimune. Em medicina, o termo doença autoimune refere-se ao facto de o sistema imunitário atacar os tecidos do próprio corpo; com o tempo, isto causa danos imensos e pode levar à morte. A versão mental desta situação não é menos grave: a conversa interna negativa é uma condição crónica para muitos de nós, por mais “normal” que possa parecer.
Trauma e Saúde Mental
Apesar de ser evidente para cada um de nós que o nosso ambiente – físico, social, relacional, ecológico – pode ter e tem impacto nos nossos pensamentos, emoções e funcionamento geral, a atenção que os fatores ambientais recebem no que diz respeito à saúde mental é surpreendentemente pequena. Mais notável ainda é o facto de esta falta de consideração não se dever, de forma alguma, à falta de provas. Muito pelo contrário, de facto: presa a um paradigma de neurotransmissores e genética, a psiquiatria não vê o que está mesmo à sua frente e fecha os olhos a grande número de provas que apontam para o papel do sofrimento causado pelo envolvente – ou seja, do trauma – na saúde mental.
Experiências adversas na infância
O estudo das Experiências Adversas na Infância (EAI) foi realizado pelo CDC e pela Kaiser Permanente no final da década de 1990. Mais de 9.000 adultos (na primeira série) responderam a um questionário sobre as suas experiências na infância, bem como sobre a sua saúde física e mental atual. O inquérito avaliou sobretudo formas evidentes de trauma na infância, incluindo abuso emocional, físico e sexual, violência doméstica e abuso de substâncias no agregado familiar. Para cada participante, foi registada uma pontuação EAI – o número de experiências EAI vividas na infância. Estas pontuações foram depois relacionadas com uma variedade de diagnósticos de saúde física e mental na idade adulta, incluindo depressão, dependência, ideação suicida, doenças cardíacas, etc.
Os resultados? Dizer que as pontuações EAI são preditivas da saúde mental seria um eufemismo. Uma análise de 2004 de Chapman et al. concentrou-se na depressão, concluindo que “as experiências adversas na infância têm uma relação forte e gradual com o risco de perturbações depressivas ao longo da vida, que se estende até à idade adulta”. Outro estudo, realizado por Park et al., centrou-se em doentes com perturbação bipolar e concluiu que “as experiências adversas na infância tiveram um efeito negativo robusto nos resultados clínicos, incluindo uma maior precocidade no início da doença, a presença de episódios psicóticos, tentativas de suicídio, sintomas ou episódios mistos, comorbilidade com abuso de substâncias e pior funcionamento na vida”.
Este tipo de resultados foi repetido diversas vezes, utilizando outros conjuntos de dados. Uma meta-análise de 41 estudos concluiu que “a adversidade e o trauma na infância aumentam substancialmente o risco de psicose”. Poderiam escrever-se livros sobre a literatura disponível neste domínio. No entanto, para os nossos objetivos, há dois elementos que se destacam. O primeiro é que a prática da psiquiatria moderna não leva em conta essas descobertas sobre traumas na infância e a saúde mental das fases seguintes, apesar de o facto de esses dados serem predominantes em toda a literatura, e assim tem sido durante muitas décadas. Não há nada de novo aqui – há mais de um século atrás, psicanalistas como Heinz Hartmann estabeleciam a ligação entre as experiências da infância, o desenvolvimento emocional e a saúde mental subsequente. A amplitude dos dados sobre este assunto é apenas ofuscada pelo número de profissionais de saúde mental que não têm conhecimento deles.
O segundo ponto importante é o facto de estes estudos, tal como referido, se centrarem em traumas evidentes. Como foi referido na secção anterior sobre traumas, os traumas de desenvolvimento – algumas ou todas as necessidades emocionais de uma criança que não são satisfeitas durante um período prolongado – são generalizados na nossa sociedade. Se o trauma manifesto pode ter efeitos tão grandes na saúde mental futura, como é que o trauma de desenvolvimento nos afeta?
Embora a investigação observacional que envolve tipos mais subtis de desatenção entre pais e filhos seja relativamente escassa – devido, em grande parte, à dificuldade de avaliar indicadores mais encobertos – os dados disponíveis confirmam a existência de uma ligação. Por exemplo, Lyons-Ruth et al. descobriram que “o afastamento materno na infância prediz tanto os sintomas borderline em geral, como o suicídio/auto-agressão em particular, quase 20 anos mais tarde”. E, talvez não por coincidência, o já mencionado estudo de Chapman et al, de 2004, sobre as experiências adversas na infância, concluiu que “de todas as experiências adversas individuais, o abuso emocional apresentou a relação mais forte com ambas as medidas de sintomas depressivos, tanto em homens como em mulheres”. No entanto, é quando se olha para a ciência do desenvolvimento do cérebro que as coisas se tornam ainda mais claras.
Desenvolvimento do cérebro
O processo de desenvolvimento do cérebro é a chave para compreender o impacto do trauma – tanto explícito como de desenvolvimento – na saúde mental futura. O Centro para o Desenvolvimento da Criança da Universidade de Harvard tem estado na vanguarda da investigação neste domínio, e as conclusões são claras: o desenvolvimento do cérebro é substancialmente moldado pelo ambiente. Entre os tesouros de dados no seu site, está a conclusão de que “a influência excecionalmente forte da experiência precoce na arquitetura do cérebro faz dos primeiros anos de vida um período de grande oportunidade e de grande vulnerabilidade para o desenvolvimento do cérebro” e que “o que acontece durante [os primeiros anos após o nascimento] pode ter efeitos substanciais nos resultados a curto e longo prazo na aprendizagem, comportamento e saúde mental”.
O caminho a seguir
O grau de solidez científica de todas as conclusões acima referidas (para não mencionar o facto de serem frequentemente intuitivas) torna ainda mais notável o pouco efeito que continuam a ter no tratamento da saúde mental na nossa sociedade. A nossa tarefa, portanto, deve ser a de incorporar este enorme conjunto de dados em melhores abordagens de tratamento.
Tratamento centrado na causa
Tornar-se completos
A palavra curar evoluiu a partir de uma palavra do inglês antigo que significava tornar completo. Embora atualmente pensemos que curar significa eliminar o que nos aflige, a sua definição mais antiga era mais abrangente e reconhecia que os seres humanos lutam pela integridade. Embora o significado específico de integridade possa ser debatido, o que é claro é que o trauma nos afasta dela. O trauma desconecta-nos de nós próprios, separando-nos, desligando-nos e hiper-activando várias partes da nossa mente (e corpo), o que resulta em vários padrões de pensamento, emocionais e comportamentais que, se forem suficientemente graves, são rotulados como “doença mental”. E mesmo quando estes padrões não atingem um nível clinicamente diagnosticável, tendem a ter um impacto significativo na nossa vida diária.
O percurso de cura consiste, portanto, em regressar à plenitude, restabelecendo a ligação com nós mesmos. A forma exata de o conseguir varia de pessoa para pessoa: da psicoterapia ao yoga, passando pelos psicadélicos, a lista de modalidades disponíveis é longa. Neste caso, vou concentrar-me numa forma de terapia chamada Sistemas Familiares Internos (SFI) que, em vez de subscrever um modelo patologizante de “perturbações” e diagnósticos, adota uma abordagem solidária para compreender e trabalhar com sintomas emocionais/comportamentais.
Tratando o trauma com o SFI
O SFI é perfeitamente adequado para trabalhar com adaptações traumáticas (também conhecidas como disfunções de saúde mental) por uma série de razões: o reconhecimento da multiplicidade da mente, a sua natureza centrada no trauma, a sua mentalidade não patologizante e a sua abordagem de tratamento de baixo para cima.
Focado nas partes: Uma noção fundamental para o SFI é a de que a nossa mente consiste em partes, em vez de ser uma entidade singular. Embora isto possa parecer estranho à primeira vista, é normalmente um conceito bastante fácil de compreender, porque se alinha com a forma como normalmente experienciamos as nossas mentes. É frequente dizermos coisas como “Uma parte de mim quer fazer isto, mas outra parte não quer” ou, mais genericamente, “Sinto-me em conflito em relação a este assunto”. Estes tipos de pensamentos são reflexos das nossas partes em ação. Além disso, as tendências comportamentais, tais como um temperamento incontrolável, são o resultado do trabalho dessas partes; por exemplo, uma pessoa pode ter uma parte que é propensa a explosões de raiva e que, essencialmente, assume o controlo do sistema da pessoa (geralmente por um período curto) quando é desencadeada. Outras vezes, porém, esta parte é invisível, funcionando em segundo plano.
Apesar da facilidade e frequência com que a maioria das pessoas experiencia as suas partes, o campo da psicologia passou os seus mais de 150 anos de história a negar as visões da mente baseadas nas partes. De facto, patologizou esta perspetiva ao considerar a Desordem Dissociativa de Identidade (DDI), formalmente conhecida como Transtorno de Personalidade Múltipla, como uma condição em que a mente de uma pessoa está fragmentada em partes como resultado de um trauma grave. O pressuposto não declarado aqui é que o resto de nós tem mentes unitárias. Na realidade, a DDI é simplesmente uma situação mais extrema em que as partes de uma pessoa tendem a não ter consciência umas das outras, fazendo com que a pessoa tenha um número de personalidades independentes.
A posição do SFI é que nascemos com partes – elas são inerentes à nossa mente desde o início, tal como o nosso corpo tem partes. Estas partes, coletivamente, são uma família que forma o sistema interno a que nos referimos coloquialmente como a mente – daí o nome Sistemas Familiares Internos.
Centrado no trauma: A abordagem SFI tem como objetivo curar as partes dos traumas que sofreram, restaurando a harmonia do sistema interno. Quando uma parte se comporta de forma desadaptativa (por exemplo, comportamentos aditivos, uma crítica interior incessante, ou mesmo a depressão), isto é visto como o resultado de um trauma – o comportamento da parte é uma estratégia de sobrevivência destinada a proteger o sistema contra mais traumas. Ao contrário da maioria das abordagens psicoterapêuticas, trabalhar com esta parte como sua própria entidade tende a ser muito mais eficaz do que simplesmente tratá-la como um comportamento indesejável a ser eliminado.
Não-patologização: O reconhecimento de que a mente é constituída por partes, e que os seus padrões de comportamento indesejáveis se devem a traumas, resulta numa perspetiva muito menos patologizante dos pensamentos e comportamentos disfuncionais. Uma perspetiva consciente das partes permite-nos separarmo-nos dos pensamentos, comportamentos e reatividade das nossas partes – fornecendo um caminho para a compreensão e auto-compaixão em vez de culpa e vergonha. A auto-compaixão é um componente crítico para a verdadeira cura. Como diz o mestre espiritual A.H. Almaas, “só quando a compaixão está presente é que as pessoas se permitem ver a verdade”. A cura requer ver a verdade sobre nós próprios, e ver a verdade requer auto-compaixão. No entanto, sem uma mentalidade consciente das partes, não temos outra opção senão identificarmo-nos com os nossos comportamentos (“Tenho um problema de raiva”) e culpabilizarmo-nos (“Devia ter vergonha de mim próprio”).
Bottom-Up: O SFI é uma abordagem de baixo para cima, na medida em que trabalha em grande parte com o inconsciente para efetuar a mudança. Isto contrasta com as abordagens comuns, como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), que se concentra na mudança de comportamentos. Estas abordagens são de cima para baixo, na medida em que trabalham com processos conscientes para tentar mudar o sistema. Tal como o fundador do SFI, Richard Schwartz, observa frequentemente, a TCC e outras abordagens semelhantes baseiam-se no princípio da adição: acrescentar novos conhecimentos e competências aos pensamentos/comportamentos desadaptativos já existentes e tentar fazer com que o novo “expulse” o antigo.
O objetivo do SFI, por outro lado, é libertar os constrangimentos que dificultam o sistema interno, o que faz com que os comportamentos mais adaptativos e as competências relacionais surjam como resultado natural. Quando se trata de traumas e das nossas partes, há todas as razões para acreditar que o subconsciente está normalmente no lugar do motorista; por isso, uma abordagem de baixo para cima à terapia tende a ser mais propícia à cura.
O Eu: Crucial para o SFI é a noção do Eu. Também encontrado em quase todas as tradições espirituais e religiosas, o Eu é a nossa verdadeira essência, o verdadeiro “nós” – o aspeto de nós que não é uma parte. Quando as nossas partes são traumatizadas em tenra idade, o Eu é demasiado jovem para proteger o sistema. Como já foi referido, as partes entram em ação para fazer o trabalho através de adaptações e estratégias de sobrevivência. Isto tem o efeito de essencialmente encobrir o Eu, e as partes acabam por dirigir a maior parte do espetáculo no nosso dia-a-dia. O Eu, no entanto, nunca pode ser danificado. É curioso, solidário, aberto e paciente. Juntamente com a cura das nossas partes, o objetivo do SFI é, portanto, reconectarmo-nos com o Eu, e fazer com que ele se torne o líder do sistema interno.
Resumo do SFI: A beleza do SFI é que está fundamentalmente interligado com todos os aspetos do trauma. Como o trauma nos afeta tão dramaticamente, e porque que as nossas partes se adaptam a eventos traumáticos da forma como o fazem, estas podem igualmente ser curadas. Embora não exista uma abordagem única para a cura de traumas, a minha esperança é que essa rápida visão do SFI forneça algum contexto de como a saúde mental pode ser abordada de uma maneira muito diferente do que é habitual.
Conclusão
Acredito que se está a preparar uma revolução no que diz respeito ao tratamento da saúde mental na nossa cultura. Embora as mudanças em grande escala sejam sempre frustrantemente lentas, a escrita está na parede – devido em boa parte aos esforços como os de Mad in America.
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O Mad in America acolhe blogues de diversos autores. Estas publicações foram concebidas para servirem de fórum público de debate – em termos gerais – sobre a psiquiatria e os seus tratamentos. As opiniões expressas são as dos próprios autores.