Eu passei anos da minha vida pensando que transtornos mentais eram doenças como quaisquer outras, e que essa ideia era inquestionável por qualquer pessoa que partisse de um ponto de vista científico. Eu mesma tinha um diagnóstico psiquiátrico, que fazia todo o sentido para mim. Foi em uma palestra em um evento da semana de luta antimanicomial, que eu vi que estava errada. Nela, eu descobri que já há muito tempo diversos acadêmicos, profissionais da área da saúde e ex-pacientes psiquiátricos apontam para a falta de provas cientificas que indiquem que os fenômenos que chamamos de transtornos mentais tenham qualquer base biológica, e denunciam as consequências danosas dos diversos tipos de intervenções psiquiátricas. Desde então, eu me tornei uma ex-paciente crítica da psiquiatria, passando a me ver como sobrevivente ao entender que havia sofrido várias violências durante as internações psiquiátricas as quais fui submetida, bem como desenvolvido diversos problemas de saúde por ter tomado drogas psiquiátricas desde os 16 anos.
Eu estudei sobre as substâncias que eu tomava através do site “The Withdrawal Project”, criado pela sobrevivente norte-americana Laura Delano. Esse site conta também com uma plataforma chamada “The Withdrawal Project Connect”, que permite que pessoas lidando com efeitos físicos ou psicológicos desagradáveis e que desejem parar ou diminuir o uso de drogas psiquiátricas possam conversar e trocar estratégias para lidar com as dificuldades próprias desse processo, que pesa e muito em um corpo que se adaptou às drogas. E em 2022, duas sobreviventes brasileiras decidiram fazer um grupo de WhatsApp inspirado nessa iniciativa, para que também tivéssemos esse espaço de trocas em português. Essa foi a primeira vez, até onde sabemos, que sobreviventes da psiquiatria brasileiros se reuniram.
No Brasil, não temos historicamente movimentos de sobreviventes, apenas movimentos de usuários da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial). O que diferencia os movimentos de usuários brasileiros dos movimentos de sobreviventes que existem ao redor do mundo é que, enquanto usuários entendem que tem uma doença que precisa de tratamento e reivindicam que este tratamento seja humanizado, sobreviventes da psiquiatria entendem que não são doentes e que colocar suas questões, que não são de ordem biológica, como objetos da medicina, é algo inerentemente desumano.
Eu logo me juntei ao grupo, que permite que mulheres em retirada ou pensando sobre
retirada das drogas troquem informações sobre a substância utilizada e sobre como costuma ser sua redução, além de estratégias para lidar com sintomas difíceis que surgem no processo. Se incentiva a busca por um profissional que acompanhe corretamente o processo de redução e a ideia não é oferecer conselhos médicos, e sim fornecer apoio. Com o tempo, o grupo também virou espaço de trocas sobre experiências adversas com a psiquiatria de forma geral.
Existem várias dificuldades comuns. Uma delas é a de que psiquiatras não costumam
reconhecer problemas causados pelas drogas, mesmo quando estes constam na própria bula dos medicamentos, ou quando são sintomas de acatisia, síndrome que o próprio DSM já reconhece como sendo causada por drogas psiquiátricas. No desespero para se livrar dos sintomas, muitos pacientes tentam parar a medicação de uma só vez, desenvolvendo sintomas de abstinência e sendo ainda culpabilizados por estes, ouvindo de psiquiatras que aquilo seria “a doença voltando”, mesmo quando os sintomas nada tem a ver com aqueles de qualquer transtorno. Mesmo quando encontram um profissional que está disposto a retirar as drogas, este normalmente desconhece a existência da forma segura de fazê-lo, que é a de retirar no máximo 10% da dose em um período de no mínimo 3 semanas (Breggin, 2012).
Outro desafio é o de encontrar psicólogos que tenham qualquer leitura sobre danos causados por drogas psiquiátricas e que não interpretem a opção de não as utilizar como “resistência ao tratamento”. Relatos de violências praticadas por profissionais e de experiências adversas com drogas psiquiátricas são invalidados. Mesmo os profissionais que se dizem críticos da psiquiatria, só são críticos até o paciente chegar em um “tema de psiquiatra”, como suicídio, automutilação ou audição de vozes. Quando os pacientes tentam trazer algum desses temas para o psicólogo, na tentativa de elaborá-los, ouvem de volta “Você está tomando seus remédios?” ou “Você contou isso para o seu psiquiatra?”, dando a entender que essas são questões a serem apenas medicadas, não verbalizadas, e culpabilizando a pessoa pelo que ela vive: se ela sente aquilo ainda, é porque deve estar fazendo algo errado, não seguindo o tratamento. Isto não condiz com a realidade, já que muitos pacientes tomam medicações há anos e sentem que só pioram.
Dessa forma, muitos sobreviventes que desejam trabalhar suas questões, desistem da
psicoterapia. No meu caso, só voltei a terapia quando vi uma psicóloga postando sobre o movimento de sobreviventes da psiquiatria no Instagram, porque eu queria um profissional que acreditasse em mim. Assim, eu pude elaborar anos de traumas causados por internações psiquiátricas e violências sofridas por profissionais de saúde. Ter essas violências vistas como o que são, violências, faz toda a diferença. Um psicólogo reconhecer que outro profissional praticou uma violência é raridade, já que eles normalmente assumem de antemão que o especialista, detentor do saber, estava certo, e a pessoa diagnosticada, irracional, errada.
Nos CAPS, infelizmente a situação muitas vezes é a mesma do setor privado. Além de não saberem fazer a retirada medicamentosa e repetirem o mesmo discurso culpabilizante, os profissionais coagem usuários a fazer uso de drogas psiquiátricas, seja condicionando sua participação em outras atividades do CAPS ao uso das drogas, ou fazendo ameaças de internação involuntária aos que não querem se medicar.
Um ponto que fica claro nos relatos de sobreviventes é que o sofrimento e as reações
causadas por violências física, sexual ou psicológica, comuns na vida das mulheres, são
patologizados. É possível perceber isso em casos em que a raiva de uma sobrevivente é lida como “inadequada” porque incomoda o psiquiatra e a família abusadora, por exemplo. O foco das intervenções, por sua vez, fica todo no comportamento das vítimas. Inclusive, relatos de violência apareceram tanto no nosso grupo que esse foi um dos motivos para a votação de que nele só entrariam mulheres. Muitas relataram não se sentir confortáveis com o risco de homens invalidarem suas histórias, coisa que já experienciaram antes, inclusive com profissionais da saúde. Outro ponto interessante é que na nossa página do Instagram também chegam mais mulheres, muitas deixando claro que são feministas. As feministas já estão acostumadas com instituições que se dizem “neutras”, mas na verdade servem aos interesses do patriarcado.
Mas nem toda sobrevivente foi patologizada por ser vítima de violências. Algumas relatam ter vivido um período particularmente difícil ou estressante, procurado um psiquiatra e acabado imensamente piores do que chegaram no consultório, com sintomas que nunca haviam vivido antes. O que une os sobreviventes é a busca por repensar aquilo que foi colocado para eles pela psiquiatria, e em muitos casos, a vivência de um processo de desmedicalizar o próprio sofrimento, através da reflexão crítica sobre a própria história. Quando entendemos que nossas questões não são causadas por uma doença, abrimos a porta para construir novos sentidos. Histórias que entes eram “tenho tristeza profunda porque tenho depressão” podem virar “tenho tristeza profunda porque de fato eu vivi uma situação muito triste”. A experiência de troca entre mulheres que passaram pela mesma situação ou simplesmente se mostram disponíveis e solidárias a dor uma da outra, mostra que não é necessário um diagnóstico médico para que um sofrimento seja reconhecido e validado, nem para que ocorram trocas entre pessoas com o mesmo sofrimento, justificativas muito usadas para defender os diagnósticos psiquiátricos.
Hoje, esse grupo já atingiu sua capacidade máxima, com 15 participantes, devido às limitações do formato WhatsApp e da capacidade das moderadoras, que cuidam para que nenhuma conduta perigosa, como a retirada abrupta de qualquer droga, seja incentivada. Incentivamos que novos grupos de sobreviventes se organizem, para tratar do tema de drogas psiquiátricas ou de outros temas. Estamos abertas para trocas, envio de relatos e construção de projetos no Instagram @sobreviventesdapsiquiatria.
REFERÊNCIAS:
BREGGIN, Peter. Psychiatric Drug Withdrawal: A Guide for Prescribers, Therapists, Patients and Their Families. Springer Publishing Company, 2012.